Cultura

O verão do amor

O sonho ainda não havia acabado

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Por aqui era inverno quando chegou o verão do amor. Quando dez mil hippies se reuniram no Central Park, em Nova York, para empinar pipas, soltar balões, fazer um fumacê e entoar canções que falavam do coração, aqui fazia frio. 

Chegava às lojas Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um disco que saiu da vitrola para entrar pra história. Não era pra menos. Quem não se lembra de Lucy flutuando no céu com diamantes?

Biafra virava oficialmente um país africano quando os primeiros acordes foram ouvidos em Monterey naquele 1967. Acordes de Ottis Redding, The Byrds, Jefferson Airplane, The Mamas & The Papas.

A guerra dos seis dias começava, para nunca mais acabar, quando ouviu-se a voz de Janis Joplin ecoar, o som da cítara de Ravi Shankar se espalhar no ar e a guitarra de Jimi Hendrix arder em chamas.

Cinquenta anos depois, comecei a me perguntar que diabos eu estava fazendo naquele verão do amor, quando os hippies deixaram seus cabelos crescer, abriram a boca de suas calças americanas, jogaram água sanitária em suas camisetas, vestiram seus tamancos suecos e começaram a dar poder às flores, espalhando-as pelos campos. 

Lembro-me que também vesti um tamanco sueco, enfiei uma camiseta manchada de cândida, deixei crescer os caracóis dos meus cabelos, dependurei no pescoço uma bolsa de couro de bode comprada no Mercado Modelo de Salvador, que fedia muito, cheirava mal, e peguei a estrada.

Fui consultar meus escritos e encontrei poucas anotações. Naquele ano, estudava no Colégio Tito Novaes, depois de tomar bomba em francês no Colégio de Aplicação. Precisava terminar o curso ginasial e foi num colégio pobre que fui buscar o meu canudo.

Era lá que dava aula dona Wanda, a professora de inglês que traduziu pra turma a música A Day in the Life. I read the news today, oh boy… Lembro bem que ela dizia: Eu li as notícias hoje! Esqueçam esse oh boy!

Ouvíamos Sunshine Superman, com Donovan, For what it’s Worth, com Buffalo Springfield, Light my fire, com The Doors, Tales of brave Ulysses, com o Cream, A whiter shade of pale com Procol Harum, Heroes and Villains, com The Beach Boys, e The sound of silence, com Paul Simon e Art Garfunkel, mesmo sem dona Wanda nos ajudando na tradução.

Ainda não havia o Google, a Internet, o WhatsApp, e as notícias chegavam à provinciana Belo Horizonte só Deus sabe como.

Foi no verão do amor que enchi minha mochila jeans de sonhos e segui rumo à Bahia de Todos os Santos. De carona, fui pingando de cidade em cidade, até chegar a Arembepe, nossa praia. Foi lá que montei barraca e sonhei passar o resto dos meus dias, ouvindo as ondas do mar, o canto das gaivotas, o barulhinho bom que as folhas do coqueiro faziam quando caíam na areia branca, que era o meu paraíso.

Foi lá que deixei de comer macarrão com salsicha tipo Viena, angu com sardinha Coqueiro e sanduíche de pão com apresuntado Wilson, em troca de uma gororoba macrobiótica.

Foi lá que ouvi pela primeira vez a poesia de Bob Dylan em uma fita K7 da Basf deslizando num velho gravador de pilha.

Havia ali um sonho no ar, um cheiro de patchouli, uma Kombi customizada estacionada debaixo de um coqueiro verde, roupas comuns dependuradas ao lado de cada barraca e um fogão Jacaré com água fervendo pra mais um chá de camomila.

Havia também uma lanterna com as pilhas do gato, um incenso barato queimando, uma revistinha com os primeiros quadrinhos do Mr. Natural de Robert Crumb e o livro Cien Años de Soledad, já meio estropiado, com um marcador de páginas feito de cânhamo.

Os dias eram assim naquele verão do amor, que se chamava Teresa.

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