Cultura

Queermuseu e o falso liberalismo de Kim Kataguiri

O líder do MBL contraria seu lema “jovem, liberal e legal” no episódio envolvendo a exposição de arte cancelada

O centro cultural cancelou a exposição e ainda resolveu "ensinar" um pouco de arte na justificativa
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Quem tem um familiar bem-humorado, metido a engraçadinho, certamente conhece a antiga piada sobre a tartaruga que subiu no poste: ninguém entende como ela chegou lá, nem como é possível que se sustente, mas o certo é que um dia vai cair.

Substitua o nome do réptil pelo de Kim Kataguiri e talvez tenhamos uma imagem precisa deste garoto de 21 anos, que, por uma correlação bizarra de forças sociais, foi alçado à condição de líder político da direita brasileira quando no processo farsesco que levou ao impeachment de Dilma Rousseff.

Em entrevista à revista “Istoé”, em março de 2015, Kim dizia querer mostrar que é possível ser “jovem, liberal e legal”. Dos três adjetivos, talvez consiga certificar o primeiro, por uma questão meramente biológica. “Liberal e legal” fica por conta do ego. Seu liberalismo é nome acadêmico e mentiroso para o protofascismo ao qual faz apologia; e sobre o “legal”, bom, melhor não comentar.

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Na última semana, estimulado pelos seus milhares de seguidores virtuais, Kataguiri, em nome do MBL (Movimento Brasil Livre), do qual é co-fundador, divulgou um vídeo com os dizeres: “Absurdo! Esquerda tenta promover pedofilia e zoofilia para as crianças e com dinheiro público”.

Um desavisado, antes de reproduzir o vídeo, poderia formular em sua mente uma série de imagens do hipotético evento, talvez um grande luau sindicalista, sediado em um parque de diversão ou em um zoológico, na qual crimes hediondos seriam cometidos ao som do hino da Internacional Comunista.

Reproduzindo o vídeo, porém, viu-se que o alvo do protesto era a exposição “QueerMuseu: Cartografias das diferenças na arte brasileira”, no Santander Cultural de Porto Alegre, com obras de Cândido Portinari, Ligia Clark, Alair Gomes, Adriana Varejão, Fernando Baril, Bia Leite; artistas em cujas biografias não constam apreço, nem apologia, a relações sexuais com animais ou crianças.

O resultado é previsível tanto quanto grave: o centro cultural cancelou a exposição e ainda resolveu ensinar um pouco de arte na justificativa – “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”, dizia o comunicado.

Por mais salutar que seja o fato de um banco espanhol descobrir o propósito da arte, resolvendo um enigma que tira o sono do ocidente há mais de dois mil anos, o cancelamento não chega a ser uma surpresa: sejamos honestos, a preocupação social de qualquer instituição financeira dura o quanto durar a saúde de suas planilhas; é necessária uma dose cega de ingenuidade para se exigir de um banco sentimentos genuínos de integração de gênero.

Afinal, qualquer política cultural ou social de uma empresa, ainda mais daquelas cujo mote é a circulação do capital, será somente um agrado aos clientes que a financiam e aos ânimos do contexto em que está inserida: um país que tem Kim Kataguiri como líder não pode esperar respeito institucional aos direitos humanos.  E, a este respeito, não deve haver nenhum pingo de surpresa. Inclusive, é quando se para de acreditar nas migalhas que um banco oferece que a verdadeira consciência política dá sinais de vida.

Cabe lembrar, aqui, que, nos interiores do MBL, como mostrou reportagem da Folha de S.Paulo no último 30 de agosto,  há um departamento dedicado a criar memes, piadas de internet que depreciam e fazem troça da esquerda, exaltando figuras reacionárias e seu conservadorismo.

Não à toa, no mês de junho, um dos líderes do movimento, Renan Santos,  foi condenado a indenizar em R$20 mil o jornalista José Roberto Burnier, por tê-lo descrito como “um esquerdista global de joelhos para o PT” e retratado “como uma prostituta, oferecendo seus serviços para a presidente Dilma Rousseff”.

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Quando a representatividade nacional perpassa pela difamação aleatória, feito tiro de metralhadora, e propagandeada como bom humor, não é de se espantar que uma exposição artística seja interrompida. Triste é mais uma vez constatar que um setor considerável da população está cego à índole daqueles que elege como porta-voz de seus desejos.

Neste contexto de barbárie, que remete ao germinar dos capítulos mais tenebrosos do século XX, a esperança se configura em duas frentes: em primeiro lugar, a arte, mais uma vez, revela o seu verdadeiro papel – ser um instrumento de desobediência civil, responsável por abrir nossos olhos quando estamos cegos, revelando, neste caso, que a crença na consciência social de instituições financeiras não passa de discurso de marketing que aprendemos a engolir.

A segunda esperança é ingênua, claro, mas de sonhos e expectativas infundadas também vive a humanidade:  tudo o que sobe, desce, e estaremos aqui embaixo, esperando o momento em que a tartaruga, enfim, vai cair.

Aos que ainda conseguem enxergar, resta a vigília constante, pois a história é sábia em mostrar que as obras, os livros, os filmes são os primeiros a ir para a fogueira. Na sequência, lançam-se os seus autores.

*Felipe Poroger é diretor do filme “Aqueles Anos em Dezembro” e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas

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