Cultura

Resenha: ‘O Voo’

Denzel Washington tem uma atuação soberba em seu papel menos simpático até hoje — como um piloto de avião alcoólatra

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Por Philip French

Com roteiro de John Gatins, autor de vários filmes sem nenhuma distinção especial, O Voo [estreia no Brasil nesta sexta-feira 8] começa com uma cena deliberadamente chocante, uma espécie de recriação de Apertem os Cintos… o Piloto Sumiu!. Um despertador dispara no quarto de hotel do bonitão “Whip” Whitaker (Denzel Washington). Uma comissária de bordo nua se levanta, vai até o banheiro, volta e começa a se vestir enquanto Whip acorda, acende um cigarro, bebe um pouco de cerveja, cheira uma fileira de cocaína e diz uma piada para a garota. Então ele veste seu uniforme de piloto civil, se esconde atrás de óculos escuros e segue para um dia de trabalho. Preparando-se na cabine, ele pede um café preto com bastante açúcar e uma aspirina, e planeja um voo de rotina de 50 minutos de Orlando, Flórida, até Atlanta, Geórgia. Seu jovem copiloto e a comissária habitual estão só ligeiramente alarmados por sua aparência destruída. A maioria das pessoas na plateia agradece a Deus por não estar entre os passageiros.

Este último filme de Robert Zemeckis antes de seu longo período na animação foi Náufrago, em que um funcionário do FedEx (Tom Hanks) sofria uma das mais espetaculares calamidades aéreas do cinema antes de se encontrar atolado em uma ilha deserta no Pacífico. O filme refaz esse incidente como uma pequena turbulência depois de uma tempestade que faz o avião de Whip entrar em queda livre. Os flaps da cauda deixam de funcionar e somente a frieza e a perícia do piloto permitem que ele faça um giro de 360 graus com o avião e pouse em um campo, com apenas seis baixas de uma lista de passageiros de 106 pessoas.

Esse trecho do filme ousado e econômico, que vale o preço do ingresso, é representado em meia hora, deixando para os cineastas quase duas horas para destrinchar suas implicações. Whip Whitaker é um anti-herói que colocou em risco a vida dos passageiros com seu comportamento criminalmente irresponsável. Por outro lado, ele é um herói nacional que os salvou da morte certa ao manejar de modo brilhante uma situação complexa que, como nos disseram, teria derrubado a maioria dos colegas experientes em todo o mundo. Deveria ele, então, ser considerado um herói público e gozar de um olhar generosamente cego para seus desvios? Ou deve enfrentar as consequências de seu comportamento, perder sua licença e enfrentar uma longa pena de cadeia?

Denzel Washington iniciou sua carreira fazendo personagens heroicos, sendo o mais famoso a vítima do apartheid Steve Biko, em Um Grito de Liberdade. Seus papéis se tornaram cada vez mais humanos e moderadamente falhos, até os últimos anos, quando ele interpretou um policial de Los Angeles corrupto em Dia de Treinamento, uma autoridade dos transportes públicos de Nova York suspeito de aceitar suborno em O Sequestro do Metrô 123 e um bandido elegante em O Gângster. Em O Voo, ele faz seu personagem mais complexo e menos simpático até hoje, e tem um desemepnho soberbo, dominando o filme enquanto luta para enfrentar sua vida, sua consciência e suas várias responsabilidades.

Ele é divorciado, afastado de seu filho adolescente, um homem arrogante, convencido de sua superioridade e incapaz de enfrentar suas fraquezas, suas agressões e o vício em drogas e álcool. Recuperando-se dos ferimentos no hospital, Whip faz amizade com uma bela fotógrafa (Kelly Reilly, em um papel convencional e discreto), uma alcoólica em recuperação, que o leva a uma reunião do AA onde ele nega seu problema e sai. Mas o verdadeiro problema, como o filme deixa claro, é que ele vive em um universo amoral, onde tudo e todos conspiram para obscurecer as questões morais, éticas e sociais.

O líder sindical dos pilotos aéreos (Bruce Greenwood) é um ex-colega da marinha que quer proteger seu velho amigo e preservar a reputação da profissão. Um advogado criminalista (Don Cheadle) é trazido de Chicago, e percebe seu dever em relação ao cliente como desacreditar os testes que estabelecem a dependência de álcool e drogas. Ele também assume a tarefa de fazer que “ato de Deus” seja considerado uma das causas do desastre. O diretor do conglomerado dono da companhia aérea está ansioso para que o acidente não afete seus outros interesses, e quer que a culpa seja atribuída aos fabricantes do avião. O engraçado traficante de droga de Whip (John Goodman) apenas quer manter o nariz limpo e receber por seu trabalho.

O teste definitivo é quando o inquérito instituído pelo Conselho Nacional de Segurança nos Transportes decide levar Whip a julgamento. Ironicamente, a música no elevador do hotel que o leva para enfrentar os investigadores é uma versão boba de “With a Little Help From My Friends”. Zemeckis em geral mantém a tensão, mas o filme é longo demais e as implicações totais do drama nunca são plenamente enfrentadas. No entanto, Washington está sempre lá, um anti-herói substancial com uma dimensão realmente trágica. É um indivíduo autodestrutivo, diante de uma opção final que pode envolver sua própria aniquilação. O título do filme talvez se destine a fazer uma conexão mítica com Ícaro, o herói arrogante que voou perto demais do Sol. Deduzimos que Whip foi empurrado nessa direção por um pai e avô também envolvidos em voar.

 

Robert Zemeckis, um protegido de Steven Spielberg, é um bem-dotado autor-diretor que aplicou sua mão em quase tudo, da Beatlemania à animação, e discutiu certos temas ao longo de aproximadamente 30 anos sem alcançar a posição de “autor”. Um tema recorrente foi o de pessoas comuns que são transportadas para circunstâncias desafiadoras, como o famoso adolescente que viaja no tempo na trilogia De Volta para o Futuro. Nesta última década, ele se preocupou com histórias legendárias recontadas com a utilização de animação com captura de movimentos — O Expresso Polar, A Lenda de Beowulf, Um Conto de Natal. Talvez em reação a isso, ele escolheu uma história contemporânea realista, em parte thriller, em parte drama moral.

 O Voo

Ano de produção: 2012

País: EUA

Duração: 138 min

Diretor: Robert Zemeckis

Elenco: Adam Ciesielski, Brian Geraghty, Bruce Greenwood, Carter Cabassa, Denzel Washington, Don Cheadle, John Goodman, Kelly Reilly, Melissa Leo, Nadine Velazquez, Tamara Tunie, Timothy Adams

 

Leia mais em: guardian.co.uk

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