Cultura

Robert E. Lee, Harper Lee e os supremacistas brancos

Retirada de estátua de confederado não é a principal motivação para os atos em Charlottesville, ensinam os livros da autora

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“O que fez o desorganizado e pequeno Exército Confederado ser o último de sua espécie? O que fez ele tão fraco, mas também tão poderoso a ponto de realizar milagres?”, indaga tio Jack a Jean Louise Finch. “Robert E. Lee?”,  responde em dúvida a sobrinha, citando o principal general do polo escravista da Guerra Civil norte-americana. “Meu Deus, garota!”, rejeita ele. “Era um exército de indivíduos! Eles saíam de suas fazendas direto para a guerra.”

Visto sob os escombros do ato supremacista branco em Charlottesville, no sábado 12, o diálogo entre os personagens do livro Vá, Coloque um Vigia (Go Set a Watchman), da escritora Harper Lee, é atual e didático, especialmente quando completado pela reflexão seguinte de Jack Finch: “Certa como o tempo, a história está se repetindo”.

Leia também: Caos em ato supremacista branco nos EUA

O personagem de Harper Lee comparava o “exército de indivíduos” da Guerra Civil da década de 1860 com a Klu Klux Klan, organização supremacista que ganhava força nos anos 1950. O movimento recrutava inúmeros adeptos em defesa da segregação racial enquanto prestava continência à luta do sul norte-americano pela manutenção da escravidão no país no século XIX. O general Lee lembrado por Jean Louise era uma inspiração para os encapuzados, reunidos pelo raivoso incômodo com a tímida ascensão social negra nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.

Celebrada por supremacistas brancos em diferentes períodos da história norte-americana, a memória dos confederados voltou a ser o estopim para a expressão do ódio racial branco nos Estados Unidos. O ato “Unite the Right”, em Charlottesville, foi motivado após a decisão do conselho da cidade de remover uma escultura em bronze do general Lee.

A reflexão do tio de Jean Louise nos convida à dúvida: a retirada da estátua, onde os grupos neonazistas se aglomeraram no sábado 12, foi de fato o principal motivo para esse grupo de intolerantes ter ido a público para gritar “white lives matter”, enquanto incendiavam tochas em homenagem à Ku Klux Klan?

Segundo a tese do tio Jack, esses grupos recrutam adeptos com facilidade nos EUA não apenas por convencê-los da inferioridade do negros, mas por seduzi-los com a promessa de uma identidade política favorável ao brancos do Sul do país. Para muitos deles, diz o personagem, o governo federal não pode intervir na forma desses estados conduzirem suas relações, nas quais o preconceito é um elemento de coesão social. 

Sobre a ascensão social dos negros e de movimentos em defesa dos direitos civis como o NAACP, tio Jack resume: “Neste exato minuto, uma filosofia política estrangeira está sendo imposta ao Sul, e o Sul não está pronto para ela. Estamos nos vendo nas mesmas águas profundas “

Fossem apenas personagens do clássico “O Sol é Para Todos” (To Kill a Mockingbird), lançado no início da década de 1960, Jack, Jean Louise e seu pai, o advogado Atticus Finch, seriam eternizados como uma família branca moderna para os padrões de sua época e origem. O patrono Atticus consagrou-se na memória coletiva do país como aquele que enfrenta o preconceito de seus pares para defender Tom Robinson, um homem negro acusado injustamente. Não à toa, a obra tornou-se livro de cabeceira de muitos ativistas do movimento pelos direitos civis, integrado por grande parcela de brancos e universitários.

Vá, Coloque um Vigia foi escrito antes de O Sol é Para Todos, mas acabou deixado de lado por sua autora. Em 2015, quando Lee já estava em estado crítico de saúde, foi a público cercado de polêmicas e críticas à sua liberação. À parte os debates sobre a vontade e privacidade da escritora quanto à sua divulgação, o livro oferece uma contundente crítica social e complementa de forma valiosa o clássico da literatura norte-americana.

Ambientado nos anos 1930, O Sol é Para Todos põe luz sobre uma geração de brancos empobrecidos, também conhecidos como “white trash”. Sua condição material é semelhante à dos negros norte-americanos, mas o status social é distinto. Para acobertar um crime, um branco pobre de Maycomb, cidade fictícia do Alabama, acusa falsamente Tom Robinson de estupro. Apesar do esforço de Atticus, o acusador acaba bem-sucedido em sua investida. A seu favor, bastava sua palavra. Contra o acusado, a cor de sua pele. 

Em Vá, Coloque um Vigia, Harper Lee nos leva de volta a Maycomb 20 anos após os acontecimentos de O Sol é Para Todos. Jean Louise retorna em meio a um ressentimento racial enorme entre os habitantes brancos da cidade, que não admitem a “insolência” dos negros, agora capazes de dirigir carros em alta velocidade e responder negativamente a seus patrões. A influência da bandeira dos direitos civis revolta a elite da cidade, que passa a integrar ou apoiar a Klu Klux Klan.

A grande decepção de Jean Louise é descobrir que seu pai, um defensor incondicional da igualdade durante sua infância, curva-se aos supremacistas da cidade e passa a endossar o discurso de que os negros precisam “saber seu lugar”. Ao descontruir a sensibilidade social de Atticus, Vá, Coloque um Vigia nos entrega uma visão crua dos limites do racismo: um mesmo homem que é capaz de defender a inocência de um cidadão negro também pode negar sua afirmação social.

São os momentos de maior afirmação negra que costumam alimentar o ódio supremacista. Nos anos 1950 e 1960, a Klu Klux Klan reagia à política de inclusão em universidades, aos esforços de derrubar a segregação nos estados sulistas e à organização de minorias em movimentos de contestação. 

Os movimentos atuais estão alimentados por ódio semelhante há algum tempo. Os anos de Barack Obama produziram ressentimentos em parte da população branca empobrecida, que buscou em Donald Trump um representante de sua visão preconceituosa de mundo.

Em um primeiro momento, o presidente dos Estados Unidos ficou em silêncio após os atos que terminaram com ao menos três mortos e dezenas de feridos. Calculou, provavelmente, que grande parte dos manifestantes foram também seus eleitores. Pressionado a se pronunciar, Trump condenou a violência da manifestação apenas nesta segunda-feira 14.

Na obra de Harper Lee, a revolta de Jean Louise ao ver seu pai alinhado com os supremacistas leva seu tio Jack a desenvolver sua teoria sobre a perene necessidade das elites sulistas em afirmar sua identidade patriótica enquanto espezinham as minorias.

O “exército de indivíduos” lutou pela escravidão na década de 1860. Na segunda metade do século XX, pela segregação em locais públicos. Em 2016, elegeu Donald Trump em resposta ao primeiro presidente negro da história do país. Em menor número, hoje marcha em Charlottesville, supostamente em defesa do general Lee, mas com o objetivo final de afirmar sua identidade: “white lives matter”, gritam eles.

“Certa como o tempo, a história está se repetindo”, diz o tio Jack a Jean Louise, antes de completar, maliciosamente. “A história é o último lugar para se procurar lições.”

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