“Onde estamos?”, pergunta a mãe despertando no meio da estrada. “Estamos mortos”, responde a criança, brincando de modo quase inocente. Não por acaso, esse diálogo que abre Pegando a Estrada, longa do iraniano Panah Panahi, expressa as incertezas do mundo pós-pandemia que ecoam em muitos filmes da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que vai da quinta-feira 21 até o dia 3 de novembro.
A questão “para onde ir?” atravessa o filme de estreia do filho de Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar pelo regime iraniano, mas que seguiu filmando clandestinamente. O longa acaba de ser eleito o melhor filme no Festival de Londres e é um dos destaques da Mostra.
Exceção feita aos blockbusters – que, de resto, ocupam as telas o ano inteiro –, o evento reúne um punhado de quase tudo. Obras premiadas em festivais, títulos escolhidos para representar os países no Oscar de filme internacional e diretores cultuados por um público que há 45 anos larga até cachorro para fazer romaria cinéfila a São Paulo.
E quem não pode viajar ou ainda tem medo de compartilhar salas cheias e fazer filas imensas, não tem desculpa, pois 130 títulos estão disponíveis online, a 12 reais a sessão, na plataforma Mostra Play.
Exclusivamente no formato presencial, a Mostra é a primeira oportunidade para ver Titane, longa abrasivo da francesa Julia Ducornau, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. E talvez seja a única de ver Memoria, último objeto audiovisual não identificado do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que traz Tilda Swinton no elenco não será distribuído em cinemas.
Quem acha importante ver antes de todo mundo vai disputar a tapa um lugar nas sessões de A Crônica Francesa, Annette, Marx Pode Esperar, Marinheiro das Montanhas e Um Herói, de Wes Anderson, Leos Carax, Marco Bellocchio, Karim Aïnouz e Asghar Farhadi, respectivamente.
A Mostra, como todo festival importante, é também a melhor ocasião para descobrir novas e novos cineastas ou ser surpreendido por filmes abaixo do radar. A boa notícia é que na seleção da Mostra Play há dezenas de opções para quem gosta de experimentar.
De modo geral, a pandemia e os efeitos mentais e sociais do isolamento ainda não aparecem tematizados de modo frontal na safra deste ano, mas há algumas exceções. Em Diários de Otsoga, os portugueses Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro desafiam o sentimento de paralisia com uma mistura de documentário e ficção que celebra a alegria de criar e os prazeres do improviso.
A recorrência de personagens adolescentes denota a inquietação diante do futuro próximo
O iraniano Distrito Terminal projeta um sinistro futuro próximo, no qual a poluição e o surgimento de um vírus letal forçam um poeta a viver enclausurado com a mãe em uma Teerã transformada em pesadelo distópico.
Dois longas-metragens de estreia de cineastas brasileiros explicitam a nossa distopia no presente. Madalena, de Madiano Marcheti, e A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga, pressentem um país sem futuro, uma sociedade na qual se escolheu destruir tudo antes mesmo de criar.
A presença do tema da fuga em ficções de origens diversas reitera um sentimento generalizado de bloqueio que a pandemia só explicitou. Nesse sentido, Pegando a Estrada é um filme-paradigma, com sua família que vai sabe-se lá para onde, enquanto a natureza os segue, indiferente ao transitório.
A recorrência de personagens adolescentes na seleção deste ano chama atenção para a indefinição e a urgência que acompanham este momento geracional. O futuro não é algo remoto ou impalpável, mas está presente no cotidiano de protagonistas, sobretudo garotas, que precisam confrontar o mundo, a família e as tradições para poderem existir.
As personagens do mexicano A Noite do Fogo, do indonésio Yuni, do argentino Zahorí, do egípcio Souad, do suíço-ucraniano Olga, do croata Murina, do romeno Lua Azul e do kosovar Procurando por Venera vivem histórias contemporâneas, mas logo descobrem que suas escolhas são limitadas por regras a serem superadas.
Os rapazes não estão menos expostos à repressão de teor religioso ou às deformações impostas pelo ideal físico. O documentário Três Irmãos, do italiano Francesco Montagner, capta com acuidade a desorientação dos filhos de um muçulmano radical, quando o pai é preso sob acusação de terrorismo.
O Perfeito David, do argentino Felipe Gomes Aparicio, segue em tons sombrios a obsessão de um jovem para esculpir um corpão e ser aceito mediante a ostentação de códigos associados à virilidade.
Por fim, a adolescência como símbolo que reúne o intenso e o frágil está no centro de um dos títulos que despertam maior desejo. O Garoto Mais Bonito do Mundo retraça a trajetória de Björn Andrésen, escolhido por Luchino Visconti para representar a beleza ideal em Morte em Veneza. O que aconteceu com a perfeição quando o rapaz ficou adulto?
Essa pergunta a respeito do que vem depois também acompanha documentários que se inquietam diante do que será da natureza. Domando o Jardim descreve um esforço quase irreal para evitar o desaparecimento de árvores centenárias da rara paisagem da Geórgia. Em Holgut, o tema da extinção está ligado aos efeitos do aquecimento global na Sibéria, onde o degelo tem revelado ossadas de espécies que ressurgem para avisar que o futuro não é obra do acaso.
E aquilo que veio antes é visitado, na seleção, por documentários que recuperam as figuras de Truman Capote e Tennessee Williams (Truman & Tennessee) e de Ziraldo, autor do cartaz desta edição do evento.
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