Diversidade

“A minha mãe não é um bicho de sete cabeças”, diz filha de pai trans

Famílias LGBTs contam como cuidam da criação dos filhos. Spoiler: exatamente igual aos casais heterossexuais

Da esquerda para direita: o casal Rafael e Vanderlei com o filho adotivo Vitor
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Tailane surgiu na vida de Danielson Araújo pela primeira vez por vídeo. Com os longos cabelos crespos soltos, a menina de sete anos contou que adorava lasanha e passear no shopping. Danielson olhou para Fábio Santiago com uma certeza: era ela. O marido pediu calma – ainda havia outras crianças para conhecerem. Na sequência, surgiu o vídeo de Guilherme, de nove anos, apaixonado por futebol e estudar. Danielson se virou para o marido e viu seus olhos marejados.

Cada um encantado por uma criança diferente. E a decisão se complicou ainda mais. Foram logo avisados de que Tailane e Guilherme eram irmãos. O casal havia adorado os dois e não queria de forma alguma separá-los. Mas era totalmente fora do que haviam planejado: queriam apenas uma criança, na faixa etária entre 4 e 6 anos. Ansiosos, desceram os 16 andares da escada do Fórum e foram almoçar. “Não conseguimos escolher um ou outro. Então, a gente começou a preparar a ideia de serem dois”, lembra Fábio.

As chances dos dois serem adotados juntos eram pequenas. Entre os mais de 44 mil pretendentes no Brasil, apenas 36% deles topam adotar irmãos, segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção. Se for pensar pela idade dos dois, a situação parecia ainda mais deliciada: 5% aceitam crianças com até 7 anos e só 1,4% quer alguém com a idade de Guilherme.

“Diversas notícias relatam casos de casais homoafetivos adotando crianças que fogem do padrão da preferência geral. Como se tratam de pessoas que sofrem discriminação, tendem a ter maior sensibilidade contra discriminações”, explica Paulo Iotti, especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS). Discriminação que pega em cheio essas famílias.

Vanderlei Fernandes, de 31 anos, adotou Vitor ainda cedo – quando o menino não tinha ainda completado 2 anos e Vanderlei tinha apenas 18. Abandonado pela mãe e filho de um pai pouco responsável, o jovem Vanderlei assumiu a responsabilidade de cuidar da criança.

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Hoje, os dois vivem em Carapicuíba junto com o “tio Rafa”, como Vitor chama o outro pai, marido de Vanderlei. Quando uma de suas fotos (essa no início da reportagem) viralizou nas redes sociais pelo Quebrando o Tabu, Vanderlei encontrou acolhimento, apoio e muito preconceito. “Me chamaram de pedófilo. Isso dói um pouco. Eu sou o pai dele e o trato com muito amor”, conta.

Essa relação entre perversão e homossexualidade vem do século 19, quando ser gay era visto como doença – uma anomalia genética. Só na década de 1970 a Associação de Psiquiatria Americana retirou a homossexualidade da lista de doenças mentais. Foram precisos quase 20 anos para a Organização Mundial da Saúde pegar o mesmo caminho. Não há nenhuma pesquisa que prove qualquer relação entre homossexualidade e abusos sexuais.

Há outro “medo” sobre a criação por casais homoafetivos: a ideia de que as crianças acabem “virando” gays – mais uma lenda que nenhuma pesquisa comprova. Aos 14 anos, Vitor tem interesse por meninas. E tudo bem se fosse o contrário – essa não é uma preocupação dos pais. ”Eu quero que ele seja feliz e só”, diz Vanderlei. “É o discurso que a gente tem aqui em casa. O que importa é o amor, as pessoas se amarem”, completa Danielson.

 Saindo do armário

Aos três anos de idade, Fernanda Sant’Anna sacou a amizade colorida da mãe com outra amiga, que sempre frequentava a casa. E mandou a pergunta: mamãe, ela é sua namorada? Sempre conviveu com diversidade em casa – com pessoas gays, heterossexuais, negros e negras. Não era nada demais para ela o relacionamento da mãe com outra mulher.

Aos nove anos, a mãe começou a mostrar histórias de transexuais. “Eu já percebi na hora que ela queria me falar alguma coisa”, brinca Fernanda. Pouco tempo depois, a mãe conversou com ela e contou sobre sua transexualidade. E que, dali em diante, algumas coisas mudariam no rosto dela. A resposta da menina: “tá bom”. Foi Fernanda, inclusive, quem notou os primeiros fios de barba no rosto de Cézar Sant’Anna.

A vida segue exatamente a mesma. Cézar ainda faz as unhas da filha, cozinha, leva e busca da escola. “As pessoas falam que eu sou um homão da porra por fazer tudo isso. Sei que é um elogio, mas, gente, eu faço as mesmas coisas que a Beatriz [nome de batismo, que ele faz questão de mencionar] fazia e ninguém elogiava”, conta. “Eu brinco com a Fernanda que só meu rosto mudou. O resto, a nossa relação continua igual”, brinca.

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Na casa de Vitor, o pai Vanderlei também o chamou para uma conversa quando planejava se casar com o “tio Rafa”. O filho aceitou e pediu para casar os dois. Pegou um pedaço de guardanapo e fez um anel para o pai. “A gente, adulto, cria mais tabus na nossa cabeça do que a criança. Às vezes eu perguntava se ele sentia falta de uma mãe, se queria que eu arranjasse uma namorada. Ele sempre falou ‘não, prefiro vocês dois’”, lembra Vanderlei.

Não que nenhum deles sofra bullying ou escute comentários homofóbicos dos colegas. Fernanda se lembra do dia que um amigo perguntou como ela “conseguia viver com uma mãe trans”. “Eu só falei: a minha mãe não é um bicho de sete cabeças!”, esbraveja Fernanda. A filha, às vezes, ainda chama Cézar de mãe – e outras vezes de pai. “Eu falo na escola: se ela falar ‘meu pai’ pode ser eu ou o outro. Mas se for ‘mãe’ só pode ser eu mesmo”, brinca Cézar.

As crianças sabem bem como lidar com esses comentários preconceituosos. E a verdade é que pouco se importam – como Fernanda deixou claro. Vitor lembra que “tem, sim, quem chame os outros de viado. Eu acho que eles são uns idiotas. Por que se a pessoa é ou não, é a vida dela, ninguém tem nada a ver com isso”.

Amor

Pai solo – algo raro no Brasil de 5,5 milhões de pessoas sem o nome do pai na certidão de nascimento -, Jorge Costa também adotou por amor, um pouco no susto. Não que faltasse planejamento.

Ele havia passado sete anos na fila de espera de adoção. Queria adotar uma criança mais velha. Negou um bebê de dois anos, mas não resistiu ao pequeno Thomas, de três dias. Assumiu a paternidade de uma mãe que não queria ficar com o menino. “Ela tinha o sobrenome Costa. Parecia um sinal. Eu não sabia nem trocar fralda”, relembra. “Eu pensei: ele pode ser um Costa do meu lado, com chances, ou com uma vida mais difícil. Escolhi adotá-lo.”

Jorge Costa adotou o menino Thomas três dias após o nascimento dele (Foto: Acervo pessoal)

Vanderlei também adotou Vitor quase no susto. Soube, por meio da igreja, que uma mãe havia abandonado os filhos – e o pai não se responsabilizaria. Quando chegou na casa dela viu só Vitor, com um ano e três meses. Levou para casa, apesar de todas as adversidades: era jovem e ganhava dinheiro como catador de resíduos. “Ser pai é assumir a responsabilidade de cuidar daquele ser que está diante de você independentemente de ser do sangue ou não, dar afeto”, diz Vanderlei.  

No rosto de Tailane e Guilherme não há nada mais do que felicidade – e timidez com a câmera ligada. Entre um vídeo e outro do Youtube, brincam com os cachorros até os levarem à exaustão.

Há apenas duas semanas os dois se mudaram de vez para a nova casa. Dividem um quarto, com brinquedos escolhidos por eles e outros trazidos dos abrigos, e os desenhos feitos por eles estampados em um porta-retratos: o pai Dani, o pai Fábio, Tailane e Guilherme.

No dia dos pais, viajam para Pernambuco, terra natal de Danielson. E, pela primeira vez, conhecerão a praia e os avós. Guilherme tem um só receio: dos tubarões das praias de Recife.

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