Economia

Estado, capital, trabalho e Brasil

Alguns países abandonaram o feudalismo, diferente do que se fez e faz por aqui

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“É de manhã, vou pela estrada, flor da madrugada, e foi por ela que o galo cocorocó”. É cantarolando os versos de Caetano Veloso fora da ordem que sigo bem cedinho para a casa de um homem que trabalhou muito e hoje descansa. Faz lá as coisas de sua vontade, como fez uma família do trabalho, com direitos sob regras estabelecidas e nem sempre respeitadas. Laralalalá, é de manhã, e cada estrela é uma flor.

Quando trabalhou forte, duro, todos os dias, da madrugada até a noite, os montes de café eram cobertos à tardinha protegidos do sereno noturno, para no dia seguinte chegar à temperatura de tulha, depois de várias vezes rodado ao sol. Lembra-se, com saudade, que a molecada, filhos dos patrões e seus amigos, deixavam-no louco. Descobriam os montes e lá passavam com suas bicicletas. Reclamava e era respeitado.

Na época, o que vinha do campo se transformava. Gente forte de outras regiões do país vinha ajudar São Paulo a se industrializar. Era agronegócio, ainda não criticado, pois benfeitor.

Estamos sentados na varanda. As cadeiras são aquelas espreguiçadeiras, quase-praia, assentos e encostos feitos de um plástico tubular grosso, como espaguetes coloridos, deixam-nos confortáveis. A conversa flui sem que eu me lembre de sair atrás de palestras para públicos distraídos.

Da casa do senhor José Carlos, Carlão como ele prefere, o primeiro filho sai para o trabalho. Somos apresentados.

– Prazer.

– Tchau, pai. A bênção.

– A bênção, meu filho. Vai com Deus.

– Amém, fiquem com Deus.

Minutos mais tarde, chega da rua outro filho. Este pega mais tarde no serviço. Desce da moto e nos cumprimenta.

– A bênção, pai. Peguei o pão.

– Deus te abençoe, meu filho.

A conversa continua. Qual o melhor jeito de apanhar o café, vale a pena arrendar canaviais para usinas quebradas, difícil plantar grandes áreas com hortaliças sem pivô, as grandes famílias centenárias que de tanto brigarem por heranças fizeram na região uma quase reforma agrária produtiva.

Quando o segundo filho se despede, alerta ao pai:

– Pai, hoje tem a Abertura. Chego pra vermos juntos.

Saio de lá com a convicção de que alguma força estranha, à noite, fará eu chutar o balde das inconformidades e assistir à tal Abertura. Poderão ser agronegócio líquido de Salinas/MG, a voz de Cesária Évora gravada no celular, o ódio por quem usurpou a autoria da obra. A outra Abertura, da liberdade e da inclusão, esta demorará a voltar.

No momento, o Brasil passa por desgraças políticas, econômicas e sociais que “nunca antes na história deste País” um grupo da elite teve coragem de fazer. Nem mesmo quando instrumentalizaram os militares e vestiram-lhes a carapuça. Inéditos o descaramento, o disfarce tosco, a ideia do nada.

Voltamos a insuflar a desigualdade e quem se insurge contra isso recebe, como resposta, “mas sempre foi assim”. Nem por um, vá lá, pé-de-pato-amarelo sempre foi assim.

Países que abandonaram o feudalismo, diferente do que se fez e faz no Brasil, souberam, pelo menos, diminuir a desigualdade e criaram sociedades mais justas. Pena não estarem preservando o feito.

Estudos de Barry Eichengreen e J. Bradford DeLong, ambos economistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, respondem ao vaticínio escapista da direita.

Para o primeiro, em 250 anos, seis fases do desenvolvimento desmentem isso: 1) entre 1750 e 1850, os benefícios da revolução industrial britânica canalizados para as classes médias urbana e rural; 2) mais um século, e “certas regiões do mundo souberam materializar ganhos tecnológicos industriais e pós-industriais”; 3) a primeira era da globalização [para mim, imperialismo], entre 1850 e 1914, melhorou o padrão de vida no mundo setentrional, especialmente Europa; 4 e 5) a ‘Era Dourada’, primeiro como decadência social na Europa, depois “revertida pela socialdemocracia, entre 1930 e 1980 (…) através do aumento de impostos aos ricos”; 6) finalmente, o momento atual.

Em todas as fases Estado, capital e trabalho se fizeram conformes para diminuir as desigualdades. Onde? No mundo setentrional. Significante perguntar por que isso não se reproduziu na América Latina e África?

Das franjas do capitalismo que aqui tardio chegou, a conformação se deu ao reverso, para concentrar a renda, esticar privilégios às elites e ampliar as desigualdades e a falta de liberdade.

Ao contrário do que diz DeLong, nessas regiões a abolição da escravatura e “o relaxamento mundial de restrições fundadas em castas”, não foram expressivas para a melhor distribuição, mas tímidas, se arrastaram, e mal tiveram tempo de se afirmar antes que viesse a atual etapa do capitalismo, de caráter puramente financeiro e restritivo aos processos produtivos, mercantis e de trabalho.

Quem pôde ser Carlão foi, quem não foi não será mais.   

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