Educação
Plano de volta às aulas no Espírito Santo prevê “ritos de despedida” em caso de mortes
Documento é alvo de críticas nas redes sociais. Professor fala em ‘insensibilidade’
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Um trecho do plano de retorno às aulas presenciais na rede pública estadual do Espírito Santo vem sendo motivo de discussão. O documento, disponível no site da Secretaria da Educação do estado (Sedu), garante a organização de “ritos de despedida” nas escolas, em caso de mortes de alunos ou profissionais das unidades.
“Havendo óbitos de alunos ou de profissionais da escola, e se for algo desejado pela comunidade escolar, o grupo pode organizar ritos de despedida, homenagens, memoriais, formas de expressão dos sentimentos acerca da situação e em relação à pessoa que faleceu, e ainda atentar para a construção de uma rede socioafetiva para os enlutados”.
A passagem integra a parte do documento que aborda o acolhimento aos profissionais e estudantes em processo de elaboração do luto.
Trecho do plano de retomada das aulas no Espírito Santo.
O documento seguirá disponível para consulta pública no site da Sedu até o dia 14 de setembro e aborda aspectos pedagógicos, psicossociais e sanitários e administrativos.
Para o professor da rede estadual Swami Cordeiro Bérgamo, o trecho demonstra a insensibilidade do governo do estado diante do debate sobre a volta às aulas, além da tentativa de responsabilizar a comunidade escolar e a sociedade pela situação iminente. “O que fica para nós é uma sensação de continuidade, ou seja, havendo mortes, seguimos os ritos permitidos no protocolo e depois tocamos as aulas normalmente”, critica.
O caso também repercutiu de maneira negativa nas redes sociais. O dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, se referiu ao plano como “mórbido”. “Se há risco de óbito, e é óbvio que há, não é aceitável o retorno às aulas presenciais”.
A Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo, tomada por fundações e consultorias empresariais que atrapalham a educação, encaminhou um retorno forçado às aulas… E criou um protocolo mórbido de despedida para óbitos de alunos e profissionais da educação. Inacreditável!👇 pic.twitter.com/WpiMUCyjqN
— Daniel Cara (@DanielCara) September 10, 2020
O especialista ainda falou em traços de uma necropolítica em andamento. “A incompreensão de algo tão simples desnuda a vigência cruel da necropolítica no Brasil. Que, aliás, pode ser tratada como um traço da nossa tradição. Quem vocês acham que irá morrer?”, completou.
O plano de retomada às aulas no estado
O documento fala em uma volta às aulas gradual, com etapas e revezamento. As turmas deverão ser divididas: 50% no ensino presencial e 50% no remoto. Embora o plano não apresente uma data definida, o governador Renato Casagrande (PSB) sinalizou a retomada para outubro.
Ainda de acordo com o plano, as escolas podem priorizar as aulas presenciais, sem revezamento, para os alunos sem acesso a recursos tecnológicos, desde que respeitadas as condições sanitárias e de distanciamento físico.
A retomada da etapa presencial será iniciada com os professores, com atividades de acolhimento e planejamento coletivo. Sete dias depois, começa a primeira etapa que envolve os estudantes do Ensino Médio, da Educação Profissional e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). 15 dias depois, deve ter início a fase 3, que inclui os anos finais do Ensino Fundamental. 15 dias mais tarde, o plano entra na fase 4, com o retorno dos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Ainda de acordo com o texto, “estudantes pertencentes a grupos de risco, e que apresentem laudo de comorbidade, devem ficar em casa”.
O plano ainda afirma que “todos os casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 sejam imediatamente colocados em quarentena, sem que haja prejuízo à frequência escolar e ao processo educativo”.
Para Bérgamo, embora a proposta aparente segurança, não há como garanti-la diante das especificidades do processo educacional. “As condições vão muito além de álcool gel e máscara, é uma complexidade ampla. Estamos falando de um alto quantitativo de estudantes e da imaturidade das crianças diante da doença. Além disso, temos escolas precárias que apresentam falta de água, bebedouros e ventilação“, esclarece.
O docente ainda fala sobre a logística para que professores, demais profissionais e alunos cheguem até as escolas. “No setor urbano, precisamos considerar a situação do transporte público, que já sofre de superlotação com a redução da frota. Nas áreas ruais, quando há transporte público, o motorista fica sozinho, sem condições de controlar a interação entre os estudantes”, pondera.
Na visão do professor, o processo também não se justifica pela proximidade do fim do ano letivo. A Secretaria da Educação se decidiu no mês passado pelo encerramento das aulas no dia 23 de dezembro. Ainda de acordo com a decisão, os conteúdos não aprendidos este ano serão ministrados em 2021.
“Entendo que essa pressão para o retorno tem muito do desejo de agradar ao setor empresarial, já que o diálogo do governo se deu primeiramente com o sindicato dos donos de escolas particulares, até mesmo antes do que com o conselho estadual de educação. É uma concepção equivocada”, critica Bérgamo.
A resposta da Secretaria de Educação
O secretário de estado da Educação, Victor Angelo, classificou a interpretação do plano de retomada como fake news, “no sentido de uma leitura equivocada”. “O trecho colocado no plano nem de longe traz a morbidez apontada por educadores e especialistas”, afirmou.
“Quem fez uma leitura psíquica do documento sabe que ali tem um olhar sensível e humanizado, na perspectiva de uma escola acolhedora. Estamos passando por um momento muito difícil e prevendo que, quando esse retorno às escolas acontecer, lidaremos com pessoas impactadas pela perda de pessoas queridas, e também pelo isolamento, com questões como angústia e ansiedade. É natural que façamos das escolas não só um local de ensino, mas de acolhimento”, completou, afirmando que o texto se baseou em um protocolo da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
Questionado sobre as críticas à estrutura física das escolas, o secretário afirmou que a pasta irá levar em conta a situação das unidades ao pautar o retorno. “Sabemos que a situação da rede pública brasileira carece de ajustes, mas onde estavam essas pessoas que estão reclamando só agora? Uma escola que não oferece água nem devia estar funcionando, emendou.
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