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¿Por qué hay reyes?

A troca de trono na Espanha 
e os regimes europeus contemporâneos que se combinaram ao espetáculo político

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O rei Juan Carlos de Bourbon abdicou em favor de seu filho, agora rei Felipe VI. Atribuiu-se a transição dinástica aos recentes escândalos que só reafirmam a sua controversa biografia.

Afinal, nada havia de novo no polêmico safári africano em que ele alvejou elefantes em extinção. Caçar é a principal função da nobreza, depois que ela perdeu seu papel militar. Juan Carlos tem em seu passado problemas muito maiores. Quando tinha 18 anos matou “acidentalmente” seu próprio irmão com um tiro.

Os recentes escândalos de corrupção na família real espanhola decerto abalaram a confiança na monarquia, especialmente num país que, ao lado da Grécia, suporta a mais alta taxa de desemprego da Europa.

A reinvenção da coroa espanhola em 1975 foi uma traição do ditador Francisco Franco ao próprio fascismo espanhol que era tudo, menos monarquista. Por outro lado, a sua oposição se definia como republicana. Por isso, muitos espanhóis se perguntam por que preservar uma monarquia tão recente e sem base social.

Criou-se a lenda de que Juan Carlos seria um moderador, fato demonstrado quando ocorreu uma tentativa de golpe militar em 1981 e o monarca, convenientemente, não apoiou a quartelada de uns poucos oficiais descontentes.

Mas o movimento dos indignados e o ressurgimento de propostas separatistas tornaram a figura do rei inconveniente, mesmo para as classes dominantes. No entanto, monarquias contemporâneas insistem em permanecer no cenário político em pleno século XXI. Qual a razão?

A monarquia foi um sistema baseado na autoridade tradicional de um indivíduo dotado de poder mágico e tendencialmente absoluto. Assim, o rei não tinha sua autoridade legitimada por leis, mas por costumes; não governava cidadãos, mas súditos. Rigorosamente, nem havia opinião pública nem sociedade civil ou a ideia de liberdade.

Um reino era a extensão da família. Os súditos eram filhos num Estado patrimonialista e paternalista. E, como diria o historiador francês Ladurie, a própria população enxergava na família real e no Estado que era o patrimônio do rei uma representação das famílias dos súditos.

É claro que essa definição é um tipo ideal. Reis nunca foram totalmente absolutos. Em primeiro lugar porque precisavam respeitar as franquias (liberdades) de corpos específicos do Estado. Além disso, o Estado moderno possuiu menos controle de seus súditos do que o Estado contemporâneo dotado de um inigualável poder de espionagem recentemente denunciado por Edward Snowden.

As monarquias foram deixando a cena ao longo dos séculos, quando as chamadas revoluções burguesas destronaram os reis e criaram um sistema legitimado não mais por tradição, mas por leis.

A burguesia não governou depois disso. O historiador Arno Mayer demonstrou que a aristocracia continuou firme no leme das principais potências europeias. Até as duas guerras mundiais do século XX, as forças do antigo regime eram política e culturalmente dominantes e a propriedade da  terra era o sinal máximo de riqueza.

No caso inglês isso explica a permanência da coroa britânica. Foi preciso, porém, criar tradições falsas que justificassem sua continuidade. Em 1917, no meio da guerra, o rei George V alterou os sobrenomes alemães de sua família e criou a Casa de Windsor.  Afinal, a Inglaterra estava em guerra com a Alemanha.

As monarquias tiveram, então, de se redefinir. Elas jamais foram nacionalistas, porque um mesmo rei governava territórios e povos em muitos lugares distintos. Ainda hoje a rainha Elizabeth é nominalmente soberana de países tão diferentes como Austrália e Jamaica.

Fim das monarquias?

Nos últimos decênios transformações culturais profundas arrancaram os últimos alicerces monárquicos. A família extensa hierárquica, aquele microcosmo da realeza, erodiu-se. O casamento monogâmico obrigatório e o autoritarismo paterno entraram em crise, ao menos no Ocidente, embora o machismo persista.

A atual família real sueca descende de um general de Napoleão Bonaparte. Talvez por isso, a herdeira atual do trono sueco tenha se casado com seu personal trainer. A rainha consorte da Holanda é filha de um ministro da ditadura argentina. A futura rainha da Noruega é plebeia e mãe solteira, o que não tem nada de errado, evidentemente. Embora a “produção independente” seja louvável diante dos tipos de homens que andam por aí, não é isso o que se espera de uma instituição retrógrada como a monarquia.

Ou talvez seja exatamente isso?

Costuma-se contrapor o exemplo “tradicional” da realeza britânica com a novíssima monarquia espanhola. Nada mais falso, como o leitor já viu. As tradições de uma e outra são igualmente inventadas. Mas isso não quer dizer que a da Inglaterra não exerça fascínio maior. Antes de tudo porque a Grã-Bretanha perdeu seu império, mas se manteve como uma potência econômica e militar no contexto europeu e a Espanha não.

A morte da princesa de Gales, Diana ao lado de seu namorado, o milionário egípcio Dodi Al-Fayed, em 1997, reacendeu a polêmica da sobrevivência da monarquia. É que o acidente caiu como uma luva para a família real britânica manter suas “tradições” e evitar um árabe. Logo se viu de jovens punks a velhas senhoras lacrimejando diante de redes de televisão.

Mais do que vender jornais, o papel das famílias reais é produzir regularmente escândalos que encantam as multidões. Mas só até o próximo capítulo. É quase indiferente chorar pela princesa abandonada e supostamente morta pelo serviço secreto inglês (no imaginário midiático) ou lamentar a morte de Airton Senna. A espetacularização dos dois é um mesmo fenômeno.

Mas há uma diferença de conteúdo nada negligenciável. O ritual démodé que primeiros-ministros devem cumprir diante da monarquia serve para dividir a atenção pública entre aqueles enfadonhos burocratas que governam a Europa e a figura midiática de um monarca. Essa é a função da monarquia onde o acaso histórico permitiu que ela ainda exista.

Por qué no te callas?

Com essa frase típica da cortesia de um rei, Juan Carlos interpelou o presidente da Venezuela na Conferência Iberoamericana de 2007. Como Chávez era o inimigo dos EUA no momento, a opinião publicada deu ao rei da Espanha seu último minuto de celebridade. Mas ninguém perguntou ao rei: Por qué todavía hay reyes?  Como Marx ensinou, a política é um teatro. Nela, as desigualdades terrenas aparecem representadas no mundo celestial sem conflitos sociais. Que uma celebridade um tanto cômica assuma o poder visível do Estado, enquanto burocratas “impessoais” nos governam de fato, é uma imposição da vida moderna.

Cada vez mais a produção da própria política pertence não ao campo das lutas de classe, mas da indústria do entretenimento. Chefes de Estado devem ser gerados por operações de marketing tanto quanto um astro de cinema ou de futebol.

Incluindo pequenos Estados sobreviventes por condescendência histórica ou enquanto paraísos de bilionários, como Mônaco ou Liechtenstein, ainda há 12 monarquias europeias. Perdida a razão histórica de existir, elas se combinaram com a nova exigência da política contemporânea, o que explica sua manutenção.

A função principal de uma monarquia contemporânea é o espetáculo. A economia foi naturalizada e os teólogos do novo dogma capitalista justificam a total independência de bancos centrais e o socorro estatal a grandes bancos em falência. Ninguém elege os burocratas que efetivamente governam a economia europeia e definem a taxa de desemprego de um país.

Com o fundamento da política afastado dos eleitores é indispensável espetacularizar o “poder” visível. Quando Marx escreveu que Dom Quixote já pagou pelo erro de acreditar que a cavalaria andante seria compatível com todas as formas econômicas da sociedade, ele não contava com a ressurreição midiática de cavaleiros sem espada e sem honra em mesas-redondas de “especialistas” e tabloides baratos.  Dom Quixote ao menos acreditava no que lia e seus inimigos imaginários povoaram a maior obra literária que a Espanha já produziu.

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