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Argentina: onde está Santiago Maldonado?

Testemunhas afirmam que jovem desapareceu após ser detido pela polícia durante repressão aos povos mapuches em região disputada pelo grupo Benetton

Em Córdoba, manifestante protesta em favor de Maldonado, na sexta-feira 1º
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“Aparição com vida já!”. “Levaram-no vivo, vivo o queremos”. As palavras de ordem criadas na década de 70 por organizações de direitos humanos durante a última ditadura militar argentina – que deixou em sete anos um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos – voltaram a ecoar no país vizinho. Na sexta-feira 1º, milhares de pessoas foram às ruas de Buenos Aires, unidas pela mesma pergunta: onde está Santiago Maldonado?

O jovem de 28 anos foi visto pela última vez há um mês, no dia 1 de agosto, durante um protesto realizado por mapuches, povo indígena da Argentina e do Chile, na região de Cushamen, na província de Chubut, região da patagônia argentina.

Maldonado participava da ação junto aos indígenas quando a Gendarmeria, uma força policial militar que responde diretamente ao executivo nacional, reprimiu violentamente a manifestação, sem mandato judicial, em uma operação que contou com cerca de 14 veículos e 100 homens armados a fazer disparos de balas de borracha e de chumbo. Segundo testemunhas, Maldonado tentou fugir da repressão, mas foi capturado, agredido fisicamente e arrastado até um dos veículos. “Tenho um deles aqui”, teria gritado um policial. Desde então, nada se sabe sobre seu paradeiro.

O jovem era da província de Buenos Aires, mas vivia na cidade de El Bolsón, próxima à comunidade de Cushamen, da qual se aproximou por solidariedade à luta dos mapuches. Há séculos esse povo luta para permanecer em suas terras ancestrais e contra a criminalização.

Conforme a disputa de terras se acirra, também cresce a perseguição política aos mapuches. Um de seus principais líderes nessa região, Facundo Jones Huala, encontra-se atualmente preso sob a acusação de terrorismo. No dia anterior à desaparição de Santiago, mapuches haviam realizado um protesto pela libertação de Huala.

Santiago Maldonado Durante protesto, manifestante é preso nas cercanias da Praça de Maio, em Buenos Aires, também na sexta-feira 1º (Foto: Raul Ferrari / Telam / AFP)

O principal grupo econômico atuante na região pertence à Benetton, empresa italiana mundialmente conhecida por sua atuação no ramo têxtil. A Benetton é a proprietária das terras ocupadas pela comunidade de Cushamen,

Silvia Adoue, argentina radicada no Brasil, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e representante dessa universidade no Conselho Estadual para os Povos Indígenas de São Paulo, afirma que o Grupo possui 900 mil hectares de terra na Argentina, sendo que a maior parte delas está na região patagônica. “O que a Benetton diz oficialmente é que o interesse na região é obter terras para criação de ovinos, para fins têxteis, mas há estudos que apontam para a presença de minerais na região. Ali estaria o real interesse em obter tanta terra na região patagônica”, diz Adoue.

Ela lembra que o drama dos mapuches diante da pressão econômica é anterior ao governo neoliberal de Mauricio Macri. “Hoje, na Argentina, existe uma cadeia extrativista bastante predatória, do que a prática do fracking é um exemplo, e na ponta dessa cadeia estão os territórios de povos originários, como os mapuches”, afirma. “Por isso também a resistência é tão importante para enfrentar esse modelo que não é algo de agora apenas, mas já havia se intensificado com o modelo neodesenvolvimentista anterior”, diz, em referência ao governo de Cristina Kirchner. 

Omissão do governo

Um amplo espectro de personalidades e organizações políticas e de direitos humanos da Argentina vêm cobrando que o governo de Maurício Macri averigue as denúncias contra a Gendarmeria e busque os responsáveis pela repressão e pelo desaparecimento do jovem. Além das mobilizações pelo país, o assunto vem dominando as redes sociais e os meios de comunicação há um mês. Mesmo veículos oficialistas como El Clarín e La Nación se veem obrigados a tratar do tema, ainda que para reiterar a versão oficial que, até o momento, é de negação.

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A ministra de Segurança Pública, Patrícia Bullrich, desde o início, busca reiteradamente defender a ação dos gendarmes e sustenta que não há provas de que policiais sequestraram Maldonado. “A operação foi feita sob as regras do uso racional da força”, afirmou quando sabatinada por uma comissão do Senado, dia 16 de agosto.   

Na mesma ocasião, Bullrich disse que não havia como provar que o jovem havia estado de fato em Cushamen no dia da repressão, devido ao fato de que estavam todos com a cara coberta por lenços e, portanto, não identificáveis.

“Não há uma só testemunha, uma pessoa sequer que tenha se apresentado à promotoria ou ao juiz para dar dados que apontem que foi a Gendarmeria que o levou”, declarou, dessa vez em uma coletiva de imprensa. A tese, segundo seus críticos, ignora não só medo e a perseguição política e policial sobre a qual vivem os mapuches, mas o papel ativo das autoridades em buscar as testemunhas.  

Quando questionada na mesma comissão do porquê de não afastar os comandantes da Gendarmeria na região de forma preventiva e interrogá-los sobre os fatos, afirmou que não toma medidas baseadas em hipóteses.

A estratégia de culpar as vítimas também foi adotada. Bullrich afirmou que a família de Santiago demorou para dar queixa do desaparecimento, ainda que as provas indiquem que a denúncia foi realizada no mesmo dia. Depois, culpou-os de não colaborar com as investigações, o que o irmão do jovem, Sergio Maldonado, em entrevista ao jornal Pagina 12 e ao canal C5N, classificou de “cinismo”.

Santiago Maldonado Com retrato de Maldonado, o ator argentino Pablo Echarri protesta contra o desaparecimento (Foto: Juan Mabromata / AFP)

Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, e Nora Cortiñas, uma das mais reconhecidas mães da Praça de Maio, pediram a renúncia da ministra. “O Estado é o responsável direto pelo desaparecimento de Santiago Maldonado”, afirmou recentemente Esquivel, para quem os agentes do Estado estão encobrindo as investigações.

No dia 23 de agosto, as Avós e Mães da Praça de Maio foram recebidas pelo governo em uma reunião. “Não é que saímos como chegamos, sem nada. Saímos piores”, disse a representante das Mães, Taty Almeida, em coletiva. “É muito triste que depois de 40 anos tenhamos que seguir gritando ‘aparição com vida’. É lamentável”, concluiu.  

Dois dias depois, a promotoria mudou a forma como o incidente estava registrado – como um desaparecimento comum – para “desaparecimento forçado”. Juridicamente, o termo implica que necessariamente há envolvimento de forças do Estado. O governo federal, entretanto, continua negando o envolvimento da Gendarmeria. “Já não sabem o que dizer”, afirmou Esquivel.

A mudança no registro se deu apenas depois de muita pressão. A advogada da família de Maldonado, Veronica Heredia, criticou a atuação da promotora e afirmou que, após retirado o segredo de justiça da investigação, o que deve ocorrer na semana que vem, irá apurar o andamento da investigação e, caso testemunhos e dados estejam sendo ignorados, pedirá o afastamento da atual promotora do caso, Silvina Ávila.

O perito da causa, Ariel Garbarz, em sua conta de Twitter, no dia 1 de setembro, afirmou que tanto o juiz da causa como Silvina Avila estão retardando o andamento das perícias, previamente acordadas com a própria promotora.

Envolvimento do governo

O jornalista investigativo Ricardo Ragendorfer, do jornal Tiempo Argentino, apurou que o chefe de gabinete do Ministério da Segurança Pública, braço direito de Bullrich, Pablo Noceti, esteve ao menos duas vezes no local da repressão, no dia 1 de agosto.  

Noceti é advogado e conhecido por defender a Fabio Iriart e Néstor Omar Greppi, repressores da ditadura militar argentina que foram condenados por delitos de lesa humanidade.

Ragendorfer também apurou que a Gendarmeria mantém uma base logística informal – e, portanto, ilegal – dentro da Fazenda Leleque, que pertence ao Grupo Benetton. A reportagem ainda relata que Noceti mantém reuniões e contato frequente com as sociedades rurais das províncias de Chubut, Río Negro e Neuquén. Nelas, sempre presente está o administrador das propriedades de Benetton na Patagônia, Ronald McDonald. Em ao menos uma dessas reuniões, a ministra Patricia Bullrich também esteve presente.

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