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Até quando os curdos ficarão sem um Estado?

Curdos estão certos ao classificar o islã radical como fascismo, mas o Ocidente é tímido demais para deter este grupo

Em Erbil, no Iraque, curdos protestam contra as ameaças do Estado Islâmico à cidade curda de Kobani e a pouca ação da comunidade internacional para evitar um massacre
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Por Nick Cohen

Sem saber ou se importar, os curdos que protestam contra a aceitação pelo mundo de que Kobani caia nas mãos do Estado Islâmico inflamaram duas causas agudas de desconforto ocidental. Eles não hesitaram em descrever o islã radical como “fascismo” e em ver Kobani como a Guernica de nossa geração. Eles foram igualmente rápidos em perguntar à “comunidade internacional” algo que ela não quer escutar: por quantos anos ainda vai permitir que um dos maiores e mais perseguidos grupos étnicos do mundo viva sem um Estado próprio?

“Flutuem nas ondas até Kobani”, os manifestantes entoaram durante protestos inúteis contra a inação turca, que vem a ser colaboração. “Parem com o fascismo do EI.”

Para mim, parece óbvio que a religião militante é uma força reacionária radical. Qualquer que seja sua forma, ela tritura os direitos das mulheres e nega as liberdades básicas da sociedade liberal. Está igualmente claro que sua variante islâmica se apoia em um grau extraordinário nas teorias da Europa fascista sobre a conspiração judaica. Se você duvida, veja a declaração nos documentos de fundação do Hamas de que os judeus “estiveram por trás da Revolução Francesa [e] da revolução comunista”. Poderia ter vindo de Hitler. (Mas até Adolf teria hesitado em repetir a alegação do Hamas de que os judeus também criaram “os Rotary Clubs [e] os Lions” para alcançar “interesses sionistas”.)

O islã radical, como o fascismo antes dele, chafurda no culto da morte: “Morte à inteligência! Longa vida à morte!”, gritou o general franquista José Millán Astray em 1936. “Nós amamos a morte mais do que vocês amam a vida”, gritam os combatentes islâmicos hoje. Existe o mesmo apoio de financistas e empresários, do que nós velhos esquerdistas costumávamos chamar de burguesia capitalista, e a mesma crença comum de que as mulheres não podem aspirar a ser qualquer coisa além de esposas obedientes.

Em um sentido, o islã radical supera os fascistas e até os comunistas. Os velhos totalitarismos podiam prometer a seus seguidores que a morte levaria apenas à maior glória da pátria ou à vitória inevitável da classe trabalhadora. Um radical islâmico pode dizer a seus executores que a morte não apenas aumentará o triunfo global do islã como levará o mártir ao paraíso.

Não posso encontrar boas bases para discordar dos esquerdistas iranianos que chamam o islamismo radical de fascismo da nossa época. Ninguém diz que você não pode falar sobre a “direita cristã” nos Estados Unidos, ao descrever os colonos judeus messiânicos nos territórios ocupados por Israel como “ultradireitistas”. Fale da direita islâmica, porém, ou mencione suas ligações com a tradição fascista no Ocidente, e encontrará incompreensão irritada. Eu perdi a conta do número de vezes que adversários me disseram que o fascismo se baseava em Estados, e não em religiões. Alguns aceitavam que era legítimo descrever o Iraque de Saddam Hussein como fascista. Ele tinha todos os adereços: o grande líder com sua imagem em toda tela de TV e o Estado de partido único determinado a exterminar os racialmente impuros – os curdos, no caso do Iraque. Mas, eles continuavam em tons de dar calafrios, usar a mesma linguagem sobre extremistas religiosos era um jogo linguístico perigoso.

Muitos liberais temem que condenar o islamismo radical em uma linguagem clara de esquerda permitirá que a extrema-direita branca pinte todos os muçulmanos como extremistas. Uma esquerda liberal com princípios realmente rejeitaria suas preocupações e se oporia tanto ao racismo branco quanto ao preconceito religioso com a mesma força e, como gosto de dizer, pelos mesmos motivos. Ela tem ainda mais causas para fazê-lo agora que o islamismo radical tem um Estado, o Estado Islâmico com seu próprio califa supremo, Abu Bakr al-Baghdadi, e todos os armamentos modernos que o exército iraquiano deixou para trás ao fugir.

Como Saddam Hussein, o Estado Islâmico está decidido a usar suas armas para exterminar os curdos. Se você vive no Curdistão iraquiano, as finas distinções entre o totalitarismo baseado no Estado fascista e o totalitarismo religioso desapareceram. Tudo o que você sabe é que durante décadas assassinos marcharam em direção à sua terra natal querendo matá-lo porque você é da raça errada ou adora seu deus da maneira errada.

Amigos curdos iraquianos descrevem a década após a queda de Saddam Hussein como seus “anos dourados”. No Iraque, se não nas áreas curdas do Irã, da Síria e da Turquia, eles tinham autonomia. A economia florescia e, apesar dos problemas habituais de corrupção proporcionados pela exploração do petróleo, os curdos construíram uma sociedade decente com proteções, embora imperfeitas, aos direitos das mulheres e das minorias religiosas. Apesar de a paz ter terminado com os ataques do Estado Islâmico, um estrangeiro poderia pensar que a sorte dos curdos estava melhorando.

Depois de duas décadas em que os ocidentais liberais defenderam o direito dos palestinos a ter um Estado, mas nunca mencionaram os curdos sem Estado, há manifestações animadoras de camaradagem na esquerda europeia. De modo mais significativo, os Estados Unidos e a Europa precisam dos curdos. Barack Obama e David Cameron garantem a seus eleitores que não haverá “botas em campo”. Os peshmerga curdos irão à luta por nós. Os curdos lutaram contra Saddam Hussein, que já foi um aliado do Ocidente e virou inimigo do Ocidente. Hoje eles combatem o Estado Islâmico, que nossos líderes condenam como o movimento mais bárbaro do planeta. As regras normais da política ditam que eles deveriam ser recompensados por seus sacrifícios, particularmente quando é tão fácil encontrar uma recompensa adequada.

Os curdos iraquianos estão organizando um referendo de independência, sob a alegação de que o Iraque é um Estado falido cujas fronteiras foram traçadas por colonialistas europeus mortos e cujos governantes só lhes trouxeram terror. De modo tocante, eles enviaram representantes à Escócia para aprender como o mundo civilizado resolve essas coisas. Eles também aprenderam a amarga lição de que, por mais liberal que seja sua sociedade ou corajosos seus combatentes, o mundo civilizado não aceitará seu direito à autodeterminação.

O Ocidente e os países árabes temem que um acordo justo para os curdos do Iraque perturbe a Turquia, apesar de os curdos iraquianos serem escrupulosos em seu apoio ao protesto interno turco-curdo pela paz e não façam reivindicações territoriais. Somado a isso, há o medo mais amplo de que a liberdade para os curdos, mesmo depois de tudo o que eles sofreram e sofrerão nas lutas contra o fascismo moderno em todas as suas formas, perturbe a “estabilidade do Oriente Médio”.

Eu conheço Bayan Abdul Rahman, a maravilhosa embaixatriz do Curdistão iraquiano na Grã-Bretanha, há vários anos. Ela é uma diplomata modelo: de fala suave, educada e discreta. Mas quando ouve arengas sobre a “estabilidade” no Oriente Médio ela solta um desabafo totalmente antidiplomático. “Estabilidade?”, grita. “Que estabilidade? Por quanto tempo teremos de ser punidos por uma estabilidade que não existe?”

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