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Constituinte é a aposta chavista para evitar guerra civil na Venezuela

Acuado pelo acirramento dos confrontos nas ruas e pela crise econômica, Nicolás Maduro tenta recuperar o apoio popular com a eleição deste domingo

Os embates nas ruas da Venezuela estão cada vez mais violentos
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Neste domingo 30, os venezuelanos irão às urnas para escolher os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte que pretende reformar a atual carta magna, nascida por inspiração de Hugo Chávez. É uma tentativa, ousada e controversa, do presidente Nicolás Maduro para revigorar o chavismo, tirar o país do impasse e afastar o risco de uma guerra civil.

As sucessivas tentativas de diálogo propostas pelo governo ao longo deste ano, uma delas com a intermediação de um representante do papa Francisco, fracassaram. O clima tem piorado desde a vitória da oposição nas eleições legislativas de 2015. O resultado naquele momento parecia antecipar o ocaso do bolivarianismo, mas faltou paciência aos antichavistas. Em vez de esperar a disputa presidencial em 2019 e promover uma alternância de poder dentro das regras democráticas, os opositores passaram a apostar com mais frequência e de forma cada vez mais violenta na remoção imediata de Maduro.

O recrudescimento do discurso oposicionista provocou uma reação não menos arbitrária do governo. Resultado: os confrontos nas ruas provocaram mais de 100 mortes, nem todas, como noticia parte da mídia internacional, obra das forças públicas. Manifestantes foram queimados vivos por antichavistas sob a acusação de serem infiltrados de Maduro.

O maior desafio do governo será mobilizar o eleitorado chavista. No início de julho, a oposição promoveu uma consulta informal sobre a Constituinte e afirma ter levado 7,4 milhões de eleitores às urnas. Os dados são questionáveis: não houve recontagem, boa parte dos votos foram queimados após a apuração e existem dezenas de fotos e vídeos a comprovar fraudes, a começar pelo clássico expediente de um mesmo cidadão votar repetidas vezes. O esforço da mídia estrangeira em criar um contexto favorável à oposição exige, porém, que a votação de domingo tenha afluência, caso Maduro pretenda equilibrar a guerra da informação.

Se vencer essa etapa e convencer os venezuelanos a votar e aprovar a constituinte, Maduro e o chavismo ganham um novo fôlego. O processo prevê a eleição de 540 parlamentares constituintes nacionais, 364 territoriais e 181 setoriais, entre eles representantes sindicais, líderes comunitários, camponeses, pescadores, indígenas, estudantes, empresários, aposentados e deficientes físicos. A oposição decidiu não participar da Assembleia Constituinte. Alega que o objetivo é ampliar a hegemonia chavista na Venezuela e justificar a instalação de uma ditadura.

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Em busca de recuperar apoio popular, o Partido Socialista Unido da Venezuela, conglomerado político do chavismo, tem uma pequena lista de tarefas a cumprir. A mais importante: modernizar a economia e diminuir a extrema dependência da receita com exportação de petróleo. Outra missão vital é tornar constitucionais as chamadas “Missões Socialistas”, por meio das quais o chavismo construiu sua base política territorial nas pequenas cidades e nas periferias dos grandes centros urbanos. Dessa maneira, caso a oposição vença as eleições em 2019, as estruturas chavistas não seriam desmontadas.

A aprovação significaria recolocar as comunidades e as periferias no centro do tabuleiro. A perda desses territórios levou o governo a sofrer a derrota nas eleições legislativas de 2015, quando o chavismo perdeu mais de 1 milhão de votos. Os eleitores tradicionais da Revolução Bolivariana estavam insatisfeitos, mas a maioria preferiu abster-se e não necessariamente escolher um representante da oposição. Maduro enfrenta, no entanto, um problema: sem a empatia de Chávez, até hoje venerado nas periferias, o presidente não tem sido capaz de levar os chavistas às ruas, hoje dominadas pelos opositores.

Os antichavistas, por sua parte, tentam tornar realidade o discurso triunfalista iniciado com o “plebiscito” recente. Apesar da clara fraude, nem todos os supostos 7,4 milhões de eleitores que teriam comparecido à consulta oposicionista aceitaram a tese de boicote à Assembleia Constituinte. Cerca de 800 mil venezuelanos ficaram ao lado do bolivarianismo. Se os números pudessem ser levados a sério, mostrariam um leve recuo das forças antichavistas: descontados os 800 mil, restariam 6,2 milhões de apoiadores do boicote. Menos do que os 7,2 milhões de votos que Henrique Caprilles obteve na eleição presidencial de 2013, quando perdeu para Maduro, e do que os 7,7 milhões amealhados na disputa de 2015, que garantiram a atual maioria parlamentar da oposição.

O antichavismo esforça-se para melar o resultado do plebiscito de domingo e fia-se em um apoio dos Estados Unidos para forçar uma mudança de poder. Às vésperas da votação, obtiveram um trunfo: Donald Trump anunciou a intenção de impor sanções econômicas à Venezuela, sem especificá-las, caso a eleição do domingo não seja suspensa pelo governo. Líderes oposicionistas, especialmente aqueles ligados ao recentemente libertado Leopoldo López, chegaram a pedir punições radicais, incluído o embargo à compra de petróleo, o que aprofundaria a crise econômica e empurraria de vez a Venezuela, que sofre com a falta crônica de produtos básicos, para o caos. Enquanto isso, tentam amealhar apoio internacional mais abrangente. Por enquanto, além dos EUA, a oposição conta com a Espanha, cujos interesses econômicos foram profundamente prejudicados durante os mandatos de Chávez, e o Brasil, tomada por uma sanha antibolivariana desde a nomeação de Aloysio Nunes Ferreira para o Ministério das Relações Exteriores.

Outra iniciativa oposicionista é a criação de um Executivo e de um Judiciário paralelos, uma espécie de “gabinete das sombras” ao modelo britânico. A ideia pode ser um tiro no pé, pois um governo paralelo poderia desgastar ainda mais a imagem dos antichavistas caso não vá além da obsessão em remover Maduro da Presidência custe o que custar. A greve geral na quarta-feira 26 e na quinta-feira 27, de relativo sucesso, mostrou o poder de mobilização oposicionista e a insatisfação crescente no país.

A partir deste mesmo domingo, os antichavistas tentarão ampliar essas iniciativas. Não se sabe ao certo qual será a jogada, mas não seria surpresa se houvesse um estímulo ao confronto físico. López, Capriles e a maioria dos líderes da Mesa da Unidade Democrática chamam o domingo 30 de “Hora Zero”, jargão de filmes militares estadunidenses, adequado para quem segue à risca o manual de guerras não convencionais.

Maduro Maduro não tem o carisma de Chávez (Foto: Federico Parra/AFP)

Há semelhanças entre a Venezuela de hoje e o Chile de 40 anos atrás. No segundo semestre de 1973, Salvador Allende enfrentava um cenário de desabastecimento parecido ao da Venezuela atual, provocado por um locaute do empresariado disposto a tudo para derrubá-lo e apoiado pelos caminhoneiros. O clima de confronto político aberto na sociedade também era similar. Havia, porém, uma diferença importante: a crise econômica não fez Allende perder a popularidade, enquanto grande parte da classe trabalhadora, especialmente os mineiros, artistas e operários da zona central do país, permanecia do seu lado e defendia o governo.

Em agosto daquele ano, Allende tomaria duas decisões cruciais para o seu futuro. Uma delas foi apelar às ruas. Para mudar as regras que permitiam ao empresariado apostar no desabastecimento e forçar a crise econômica, o presidente chileno elaborou uma reforma constitucional, barrada pelo Congresso, então dominado por opositores, e pelos tribunais de Justiça. Sem alternativa, o presidente chileno anunciou um plebiscito que daria à população o poder de decidir.

Diferentemente dos chavistas, Allende não tinha apoio nas Forças Armadas e só havia se safado do golpe antes por contar com o legalismo do comandante-chefe, o general Carlos Prats. Após o pedido de demissão de Prats, Allende tomou uma outra decisão em agosto: nomeou Augusto Pinochet como substituto. Indicado por Prats, por ser teoricamente “apolítico”, o novo comandante não vacilou em conspirar.

Muitos dos seguidores de Allende que sobreviveram à perseguição dos anos posteriores lembram nostalgicamente daquele momento. Garantem que aquela reforma teria mudado a história do país. Não é bem assim, pois o governo da Unidade Popular, apesar do apoio de sindicalistas e operários, estava politicamente debilitado, sem o apoio do Movimento de Esquerda Revolucionária e com socialistas e comunistas em conflito aberto, entre outros problemas.

Algo parecido acontece na Venezuela de hoje, ou talvez pior. Além das divisões no PSUV, a insatisfação nas bases chavistas só cresce desde a ascensão de Maduro. Outro contraste com o Chile de Allende, desta vez favorável ao chavismo, é o fato de o presidente venezuelano não ter perdido o apoio das Forças Armadas, principalmente da caserna, embora recentemente tenham despontado casos isolados de insubordinação. A origem militar de Chávez explica essa lealdade, além das lembranças do frustrado golpe de 2002 apoiado por oficiais de alta patente. Depois de vencer a insurreição, Chávez promoveu uma reforma nos quartéis. Não parece haver espaço, por enquanto, para um “pinochetismo” na Venezuela. Sem o apoio dos militares, o único caminho para tirar Maduro do poder seria esperar as eleições de 2019 ou optar pelo imprevisível caminho da guerra civil.

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