Mundo

Existe esperança para os sírios?

Ainda que se comprove a responsabilidade do regime de Assad, é provável que o terror de Ghouta seja apenas uma linha na lista de atrocidades da guerra

Apoie Siga-nos no

As horrendas imagens das vítimas de um aparente ataque com armas químicas em Ghouta, subúrbio de Damasco, correm o sério risco de entrar para a história apenas como mais uma das atrocidades cometidas na guerra civil da Síria. A ofensiva pode ser a mais grave do tipo desde 1986 (quando Saddam Hussein matou ao menos 3,2 mil curdos), o que configuraria uma derrota moral da comunidade internacional, mas ainda assim pode ficar impune. A dificuldade de comprovar a autoria do ataque é imensa e, caso isso ocorra, não parece haver disposição e possibilidades factíveis para punir os responsáveis.

Diversos especialistas ouvidos pela mídia internacional apontam que as fotos e, principalmente, os vídeos postados na internet indicam o uso de armas químicas em Ghouta. As imagens parecem trazer ao presente alguns dos piores relatos da Primeira Guerra Mundial. As vítimas têm dificuldade de respirar, algumas apresentam convulsões, tremedeiras e espumam pela boca. Os corpos de mulheres e crianças estão nas pilhas de mortos.

A oposição síria atribui os ataques a Bashar al-Assad. É uma acusação verossímil. Em abril, França, Israel e Reino Unido afirmaram que “muito provavelmente” o regime realizou ataques químicos em pequena escala. Para um especialista, a estratégia de Assad era inserir aos poucos esse tipo de armamento no conflito (como fez com tanques, helicópteros, caças e mísseis) para testar a reação da comunidade internacional. Não se sabe por qual razão Assad usaria esses armamentos num momento em que os ventos da guerra sopram a seu favor.

O governo sírio negou de forma veemente o uso de agentes químicos e a Rússia, sua principal aliada, atribuiu os ataques aos rebeldes. Não é impossível. O Jabhat al-Nusra, braço da Al-Qaeda que atua nas fileiras rebeldes de forma proeminente, pode ter algum tipo de arma química. O uso na escala em que os vídeos de Ghouta mostram, entretanto, seria uma grande surpresa em termos da capacidade da oposição. A motivação seria provocar a comunidade internacional a intervir.

ONU continua paralisada

Se comprovado o uso de armas pelos rebeldes, muito provavelmente o apoio ocidental a eles ficaria insustentável. A pressão de organizações humanitárias, da mídia e de outros setores da sociedade civil faria minguar a pouca ajuda que Estados Unidos, França e Reino Unido enviam aos opositores de Assad. Para esses países seria, também, uma forma de lavar as mãos e abandonar um conflito visto por muitos como insolúvel.

Se for comprovado que Assad foi o responsável pelo ataque, a comunidade internacional seria instada agir. Das Nações Unidas não virá o sinal verde para a intervenção. A entidade é a melhor organização que os seres humanos foram capazes de criar para não nos matarmos até o fim dos tempos, mas ela é inoperante neste caso. Ao que consta, a Rússia bloqueou, em reunião do Conselho de Segurança na noite de quarta-feira 21, uma resolução que condenava o ataque. Após o encontro, o vice-secretário-geral da ONU, Jan Eliasson, disse que a entidade “vê necessidade” de investigar o ataque na Síria e “espera” que o governo sírio autorize a investigação.

A constrangedora declaração revela o que o mundo já sabe. Ninguém pode forçar Assad, o principal suspeito do ataque, a autorizar a investigação. Nesta semana, chegou à Síria um pequeno grupo de inspetores da ONU para avaliar denúncias de uso de armas químicas em março. A ONU tenta obter autorização do regime para enviar os inspetores para Ghouta, mas é improvável que Assad a conceda. Como a forma ideal de comprovar o uso de armamentos com toxinas seria examinar as vítimas logo após o ataque, talvez o caso prossiga duvidoso por muito tempo.

A alternativa à ONU é uma ação unilateral das potências ocidentais, como a que houve na Líbia. O ministro das Relações Exteriores da França, Laurent Fabius, afirmou que o Ocidente deveria reagir “com força”, mas afastou qualquer possibilidade de enviar tropas à Síria. A porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos rechaçou perguntas sobre a “linha vermelha” estabelecida por Barack Obama em agosto de 2012, quando o presidente dos Estados Unidos disse que o uso de armas químicas “mudaria seus cálculos”. “Não estou falando sobre linhas vermelhas. Não estou tendo um debate ou conversa sobre linhas vermelhas e não estou estabelecendo linhas vermelhas”, afirmou Jen Psaki. William Hague, o ministro do Exterior do Reino Unido, manifestou indignação com o ataque e afirmou que espera ver, “um dia”, a punição dos culpados.

A guerra civil síria está em seu terceiro ano. Deixou mais de 100 mil mortos, 1,8 milhão de refugiados e provoca instabilidade política no Líbano e no Iraque. A ONU está paralisada e as potências ocidentais, que poderiam mudar a história numa mistura de interesses humanitários e imperialistas, temem entrar no conflito e torná-lo ainda pior, com o envolvimento do Irã e de Israel. Neste contexto, resta à comunidade internacional observar, estarrecida, mais um fracasso da humanidade. Diante do dilema, os governos de EUA, França e Reino Unido optam por dar declarações genéricas. Preferem pedir justiça em longo prazo. Só que em longo prazo, como lembrou John Maynard Keynes, estaremos todos mortos.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo