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“Levaram meu filho e também meu medo”

Familiares dos 43 jovens desaparecidos acusam o Estado mexicano de conhecer o paradeiro deles e de impedir investigações

O sobrevivente Francisco Sánchez Nava (e) ao lado de pais dos estudantes desaparecidos no México
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“Eles se enganaram de pais”, afirma em tom baixo, mas resoluto Mario César González Contreras, cujo filho, César, é um dos 43 estudantes desaparecidos no México em setembro do ano passado, num caso que chocou a sociedade mexicana.

“Eles pensavam que iríamos nos cansar e ficar calados em pouco tempo, mas estamos lutando com cada vez mais força. Levaram os nossos filhos e levaram também o nosso medo. Antes eles riam de 43 indígenas, de 43 pais buscando seus filhos. Mas agora estão preocupados”, disse Contreras à DW Brasil, em São Paulo.

Junto com um dos sobreviventes do massacre, alguns dos pais passaram pela capital paulista como parte de uma caravana pela América do Sul, que terminará no Rio de Janeiro na sexta-feira 12. O objetivo é aumentar a mobilização e conseguir apoio da sociedade civil para prosseguir com a busca pelos desaparecidos.

“Amamos muito nossos filhos e não vamos parar até encontrá-los”, afirma a esposa de Contreras, Hilda Hernández Rivera, de 43 anos. Desde setembro do ano passado, não há mais aulas na Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, um internato para homens. O local se tornou a central das atividades de busca dos alunos desaparecidos.

Muitos pais, que são de outras localidades, mudaram-se para a escola e vivem nos dormitórios, em condições precárias. Os que são da região chegam todos os dias de manhã cedo e ficam até de noite, organizando reuniões, passeatas e protestos.

“Perdemos tudo, assim como todos os pais. Fomos vendendo os poucos pertences que tínhamos para poder continuar a busca. Se nos convidarem a ir ao fim do mundo, eu vou. Não entendo que um pai de família perca um filho e não faça nada por ele”, afirma Contreras, demonstrando uma resignação sofrida.

O casal tem outra filha, de 19 anos, que é obrigada a se mudar constantemente e se manter escondida em casas de amigos e parentes. “Ela fica onde for possível. É uma precaução, porque desgraçadamente aprendemos como funciona o Estado no México“, diz ele.

Os estudantes foram atacados pela polícia quando retornavam de Iguala, cidade mexicana no estado de Guerrero, em 26 de setembro de 2014. Os policiais dispararam também contra um ônibus que transportava uma equipe de futebol. Ao todo, seis pessoas morreram, dezenas ficaram feridas e 43 estudantes, desaparecidos.

“Não fomos fazer uma manifestação contra o prefeito, como foi difundido na imprensa. Fomos coletar fundos para participar de uma marcha na Cidade do México no dia 2 de outubro. Havia um evento político de manhã, mas a nossa arrecadação de fundos foi às 17h, quando já não havia mais nada”, relata um dos sobreviventes, Francisco Sánchez Nava, de 19 anos.

A marcha na Cidade do México tem uma motivação que, diante dos acontecimentos, é de uma ironia cruel: homenagear os estudantes mortos no massacre de Tlatelolco, que ocorreu em 1968 na capital mexicana.

Nava conta que correu quando os tiros começaram e que um colega foi baleado no maxilar. Eles procuraram um hospital e encontraram uma clínica particular, onde, segundo conta, os médicos se recusaram a atender o colega ferido.

“O médico chamou os militares do batalhão 27. Eles chegaram e ficaram nos reprimindo, colocando armas no nosso rosto e batendo portas. Eu pedia que chamassem a ambulância para o companheiro que estava grave e eles diziam: ‘Que aguentem, já são homenzinhos. Vocês merecem isso, são vândalos'”, relata.

Nava diz que, no dia seguinte ao ataque da polícia, foi obrigado a reconhecer um dos colegas mortos, Julio César Mondragón, cujo corpo foi encontrado com marcas de tortura – além das queimaduras, os olhos e a pele do rosto haviam sido retirados.

Os jovens frequentavam a Escola Normal Rural do povoado de Ayotzinapa, no estado de Guerrero. O centro de ensino é conhecido por ser politicamente ativo e realizar manifestações por questões educacionais.

“Não nos atacaram por engano, nós dissemos que éramos estudantes de Ayotzinapa. Eles sabem que é uma escola que levanta a voz, que não fica calada e exige que se cumpram os direitos dos estudantes e camponeses. É uma escola normal rural que luta”, afirma Nava.

Em geral, os estudantes são de comunidades pobres, de origem indígena, e sofrem com a discriminação e a falta de acesso a serviços básicos. A escola é pública e tem dificuldades financeiras para se manter. Por isso, é comum os alunos arrecadarem doações.

Segundo a versão da Procuradoria-Geral da República do México, os 43 alunos foram entregues pelos policiais a membros do cartel de drogas Guerreros Unidos, que mataram os estudantes e queimaram os corpos num lixão. Os restos mortais teriam sido colocados em bolsas e despejados num rio.

No local foram encontrados um osso e um dente de Alexander Mora, o único desaparecido que foi identificado. Em janeiro, o então procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam – que acabou sendo afastado do cargo –, deu o caso como encerrado, declarando que os alunos estavam mortos: “Esta é verdade histórica”, disse.

Os pais rejeitam essa versão e mantêm as esperanças de que os estudantes estajam vivos. Eles se apoiam na avaliação de ONGs, como a Anistia Internacional, e na Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), e pressionam o governo para que as investigações continuem.

Em fevereiro, o grupo de peritos profissionais – o mesmo que atua em casos de desaparecidos pela ditaduras na América Latina – lançou um relatório afirmando que não havia nenhuma evidência científica de que os restos humanos encontrados no lixão sejam dos alunos desaparecidos. A Anistia Internacional apoiou o documento, dizendo que havia graves erros na investigação, que parecia querer “encobrir a verdade”.

“Sempre se dedicaram a procurar nossos filhos mortos em fossas. São puras mentiras”, diz Rivera. Contreras concorda. “Sim, há um molar e o pedaço de uma mão. Mas o material não foi recolhido do local pelos peritos argentinos, como deveria ter sido. A bolsa foi dada a eles pela Procuradoria. Não sabemos de onde veio esse material. Por isso não estamos completamente certos de que o Alexander está morto”, afirma.

Ele diz que não se trata de “sentir” que os filhos estão vivos. “É que não há nenhum indício do contrário”, explica. “Supostamente o México é um país democrático, mas o Estado mexicano é muito repressivo. E a sua ‘verdade histórica’ é mais uma mentira. Estamos certos de que os estudantes estão em algum lugar”, afirma.

Em março, os familiares obtiveram uma vitória. Um grupo de especialistas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos chegou ao país com o objetivo de localizar os estudantes – com vida, como querem os pais – além de revisar a investigação do Estado por seis meses.

Entretanto, os parentes acusam o Estado de estar impedindo as investigações. “O governo não permite que os especialistas interroguem os militares. Além disso, os especialistas dizem que alguns dos policiais que estão presos foram torturados para que se declarassem culpados”, conta Hilda Legideño Vargas, mãe de um dos desaparecidos.

A desconfiança de Nava foi reforçada por um episódio em que ele identificou policiais que haviam participado do crime. Ele conta que concordou em realizar a identificação desde que estivesse encapuzado para evitar retaliações. “Colocamos o capuz e identificamos os 22 policiais que estavam na nossa frente. Quando ia me retirar, os advogados da Procuradoria Geral da República disseram para retirar os capuzes diante dos acusados. Foi um truque, nos enganaram bem”, diz Nava.

Como o México tem um histórico de detenções arbitrárias, os familiares dizem não acreditar que os policiais que foram acusados e presos pelo crime sejam realmente os culpados. “Até hoje não sabemos se os policiais que estão detidos são os 22 que nós identificamos ou simplesmente pessoas inocentes. Eles fazem isso para ocultar os verdadeiros culpados. Dizem apenas que prenderam mais um, mas não mostram quem são, não sai o rosto na imprensa”, reclama Nava.

Os familiares deixam claro que não confiam em nenhum governo mexicano e chama o México de “narcoestado”. Em Guerrero, autoridades políticas têm estreita relação com os cartéis da droga. O prefeito de Iguala, José Luis Abarca, e sua esposa, María de los Ángeles Pineda Villa, foram presos, acusados de serem os mentores do crime e de terem ligações com o grupo Guerreros Unidos.

Mas, para os pais dos desaparecidos, a ligação do narcotráfico com as autoridades pode chegar até o governo federal. “Se descobrirem os verdadeiros culpados, vai cair a cadeia toda, que pode ir até o presidente da República. Por isso estão jogando com a investigação. O Estado sabe onde os estudantes estão, nos quartéis há fossas e prisões clandestinas. Os militares são treinados para isso, são especialistas em fazer desaparecer pessoas”, afirma Nava.

Ele reforça que a obrigação de devolver os alunos é do Estado. “Não vamos exigir isso de um cartel de drogas se nós vimos foi a polícia municipal que os levou”, diz. Em nota divulgada na imprensa brasileira, o consulado do México no Brasil afirmou que “condena e repudia o atroz crime” e se compromete a esclarecer o caso e levar os responsáveis à Justiça. A nota reforça que a investigação foi “exaustiva” e que o país “está aberto ao escrutínio internacional”.

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