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Em San Salvador, jovens trocam armas por empregos e esperança

Depois do cessar-fogo em Ilopango, as mortes caíram de 117 para 62 em um ano. É a primeira área do país declarada livre da violência

Equilibrista participa de evento nas ruas de San Salvador em 15 de junho. A tranquilidade é uma boa novidade na capital de El Salvador
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Nina Lakhani, em San Salvador

A praça principal de Ilopango vibra com o ruído enquanto o sol desaparece atrás das montanhas distantes. A fila para comprar papusas, tortilhas recheadas de feijão e queijo derretido, cresce enquanto hinos jorram da igreja evangélica. Do outro lado da praça, duas meninas, primas de 5 e 6 anos, me convencem a entrar em seu ruidoso jogo de futebol, sem se importar com os jovens casais que tentam desfrutar um momento tranquilo.

Um ano atrás, essa típica cena de entardecer em San Salvador não poderia existir. A cidade era um campo de batalha entre as duas maiores gangues de rua do país, Mara Salvatrucha 13 (MS-13) e Calle 18, e grafites de ambas marcavam o território, rua por rua. Os dois bandos usavam a praça para expor os cadáveres, de modo que todo mundo sabia quem era o responsável. Essa demonstração pública de violência instilou um medo profundo entre os vendedores ambulantes, donos de lojas e motoristas de táxi, os quais eram obrigados a pagar taxas de proteção às gangues. Ninguém saía depois de escurecer.

El Salvador foi classificado o segundo país com mais assassinatos do mundo em 2011. Então, em março de 2012, as gangues inesperadamente anunciaram uma trégua. Líderes dos dois lados prometeram parar as matanças em troca de condições mais humanas nas prisões e ajuda para reintegrar seus membros à sociedade. O governo da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMNL), antigos guerrilheiros de esquerda, se arriscou a perder o apoio do eleitorado ao negociar a paz com as gangues.

Em poucas semanas o número de assassinatos caiu de 14 por dia para cinco ou seis. Ilopango era um dos municípios mais perigosos de San Salvador, com 117 assassinatos em 2011. As mortes diminuíram drasticamente para 62 em 2012, e de modo improvável ela se tornou a primeira área declarada livre da violência das gangues.

Marvin Gonzáles, 29, porta-voz da MS-13, é um dos 30 membros do bando que operam uma granja de aves, um projeto-vitrine que atrai a atenção internacional para o prefeito da cidade. Ele me conta que escolheu a MS-13 em vez de sua família aos 12 anos; esta fazenda é seu primeiro emprego legal. “Servi dez anos no inferno por matar um menino cujo nome eu nem sabia, por causa de território. Quando o pai de minha sobrinha foi condenado a 136 anos por três assassinatos, eu sabia que isso tinha que parar. Perdi seis amigos para a violência de rua, não aguento mais.”

É uma descida íngreme e escorregadia da estrada para a fazenda, que dá para o maior lago de El Salvador. Apesar de já ter sido uma granja, nos últimos 16 anos essa terra serviu como depósito de lixo. Alex Renderos, 26, contorce o rosto ao lembrar da montanha de lixo fétido. “Isso foi tudo o que fizemos durante três meses. Foi terrível, os insetos eram enormes.” Ele passou três anos preso quando sua namorada estava grávida, pela posse de uma pistola 9 mm. “Eu só vi minha filha quando ela tinha 3 anos — isso dói aqui”, diz, tocando o peito. “É por isso que estamos motivados para fazer esse trabalho.” Sorrindo, Gonzáles mostra um envelope que trazia no bolso da calça. Sua namorada está grávida e ele quer mostrar o exame de ultrassom de 12 semanas. “Passei os melhores anos da minha vida na cadeia, cem homens em um quarto de 20 por 15 metros.A vida para nós pandilleros [membros de gangues] é curta: acabamos na cadeia ou mortos. Não quero isso para meu filho.”

Alguns dias depois, dirigimos até o projeto da Calle 18 — uma pequena padaria em uma rua secundária que é coberta de grafites do bando. Os fornos estão cheios e meninos saem em disparada com bicicletas carregadas de pães, tocando as buzinas para atrair clientes. Os principais chefes da gangue não estão aqui, atrasados em mais uma reunião no gabinete do prefeito com autoridades, a MS-13 e o padre Toño Rodríguez — um sacerdote polêmico que recentemente aderiu à mesa de negociação. Javier García, 22, trabalha na padaria há quatro meses e ganha US$ 5 por dia. Ele foi expulso da escola aos 14 e, como muitos adolescentes, considerava a gangue mais divertida do que ficar em casa. “Quando estou na padaria não estou nas ruas, e isso é bom para todo mundo”, diz ele, enquanto tira do forno bandejas de pão francês. “Talvez eu queira sair um dia, mas agora ainda tenho um sentimento muito forte em meu coração por minha gangue, nós cuidamos um do outro como os três mosqueteiros.”

García diz que seu amigo Kevin foi morto pela MS-13 há apenas três meses, depois de entrar no território dela enquanto vendia abacates. “Não posso imaginar a MS-13 como meus amigos, jamais. Se eu visse um agora, o mataria, por Kevin. Para que essa trégua funcione, temos de ficar afastados.”

O prefeito Salvador Ruano chegou ao poder em Ilopango em maio passado, depois de uma vitória estreita da Aliança Republicana Nacional, de direita, conhecida pela sigla Arena, em um enclave da FMLN — o partido foi punido por anos de lutas internas com um comparecimento mínimo dos eleitores. Apesar de seu físico atarracado, Ruano tem uma figura imponente enquanto grita para mim como se falasse com uma multidão. “Eu prometi aos dois grupos que os ajudaria a ganhar uma vida honesta, desde que eles mantenham seu lado do compromisso, e agora eu os tenho ao redor da mesma mesa, falando sobre paz, e as pessoas certamente estão mais seguras.” Ele rejeita os críticos como “pessoas míopes, sem nada a oferecer”. “O problema da violência aqui tem décadas, e não há uma fórmula mágica, nem um manual, uma solução perfeita… Não posso dizer que Ilopango está livre da violência, mas depois de um ano no poder estamos em transição da violência para a paz. Os que criticam talvez tenham algo a perder com a paz.”

A praça de Ilopango tem um passado sangrento. Durante a guerra civil de 12 anos, foi da base aérea ali perto que o temido Batalhão Atlacatl, uma unidade de forças especiais treinadas pelos Estados Unidos, foi enviado em helicópteros para massacrar civis em “zonas vermelhas” como El Mozote e El Calabozo. Membros do movimento de guerrilha urbana foram capturados e torturados e seus corpos jogados na praça, diz David Munguía, diretor da FMLN Ilopango, cujo escritório é enfeitado com imagens dos “mártires”. “Depois de um ano, tudo o que temos é uma padaria e uma granja que empregam um punhado de pessoas. Isso não pode sustentar a trégua”, diz Munguía. “Não há programas sociais ou projetos de prevenção, e sim, há menos assassinatos, mas o crime, a extorsão e os sequestros aumentam. “O partido Arena não apoia a trégua porque não há dinheiro na paz.”

Uma reportagem recente avaliou a indústria de segurança privada em 400 milhões de libras. A trégua frágil tem poderosos adversários religiosos e políticos. Norman Quijano, o prefeito de San Salvador e candidato presidencial da Arena para 2014, promete endurecer com o crime e parar de negociar com os criminosos. El Salvador tem as prisões mais lotadas do mundo, com 26 mil detentos amontoados em instalações com capacidade para 8.400 — um resultado direto da mão dura da Arena em 2004. Mas as alegações de Quijano de que os criminosos vivem assistindo TVs de plasma causa nervosismo, e sua popularidade está crescendo. Um motorista de táxi me diz que ainda paga US$ 8 por semana para a Calle 18 — um quarto do que ganha — e quer que todos fiquem presos por toda a vida.

Mauricio Funes, presidente de El Salvador, promete abordar a extorsão em seguida, mas a polícia, os narcotraficantes e outros criminosos organizados estão envolvidos — por isso é mais fácil falar que fazer. Jeanne Rikkers, da ONG de direitos humanos e reforma das prisões Fespad, diz: “Apesar de suas origens nos Estados Unidos, as gangues foram uma resposta de El Salvador para uma realidade local, florescendo em uma tempestade perfeita. As obrigações do Estado de reabilitar, reintegrar e melhorar as prisões, reformar a educação e a saúde, precisam ser feitas de modo transparente, com acesso para todos, e não apenas negociadas para alguns. A promessa de parar as matanças não pode resolver problemas sociais complexos subjacentes”.

Mejicanos, um subúrbio de San Salvador, será a décima área declarada livre da violência das gangues em 20 de junho, terceiro aniversário do famoso ataque incendiário da Calle 18, em que morreram 17 passageiros de ônibus. Padre Toño, que se mudou de Madri para cá há 14 anos, conversa durante um café enquanto seus guardas — a presença destes é resultado das ameaças de morte dos traficantes de drogas — vigiam lá fora. “As gangues são produto de causas não resolvidas da guerra civil: enormes desigualdades de riqueza, democracia e propriedade da terra. “O primeiro passo é conter esta guerra. A trégua não é a solução, mas sem ela não há solução. Nesse processo, as gangues poderiam se transformar em organizações culturais dentro de dez anos. Ou, se a Arena conquistar o poder com políticas mais duras e o apoio a empresas sujas como de armas e segurança, o recrutamento começará de novo.”

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