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Entre a França e a Inglaterra, imigrantes sofrem em Calais

Em meio a brigas internas entre eritreus e sudaneses que tentam entrar no Reino Unido, sobreviventes da viagem brutal contam suas histórias ao Observer

Observados por policiais franceses, imigrantes aguardam a distribuição de comida por uma ONG local em Calais, porto na França usado para entrar no Reino Unido
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Por Mark Towsend

É preciso um cálculo de tempo preciso, coragem e uma enorme quantidade de sorte. Enquanto os caminhões começam a desacelerar na Rue des Garennes, antes de uma curva fechada à direita que leva ao porto, as pessoas agachadas nas sombras ali perto precisam agir rapidamente; vários segundos é tudo o que elas têm para correr pela rua, abrir as portas traseiras do veículo e esgueirar-se para dentro dele.

O cruzamento da Rue des Garennes é uma das dezenas de pontos identificáveis onde, entre a meia-noite e o amanhecer, imigrantes – motivados pelos sonhos de uma nova vida no Reino Unido – brincam de gato e rato com as autoridades francesas enquanto tentam se infiltrar no porto de Calais.

A população de imigrantes na cidade francesa está crescendo sem parar. As últimas estimativas revelam que seu número duplicou para cerca de 1.200 desde o primeiro semestre. Os acampamentos de tendas improvisadas, conhecidos como “selvas”, são cada vez mais visíveis e irritam os políticos da cidade portuária. Calais está farta.

O vice-prefeito, Philippe Mignonet, pediu que a fronteira fosse transferida para Dover, a 30 quilômetros [do outro lado do canal da Mancha, já no Reino Unido], e que os migrantes fossem levados para o norte com ela. Doze anos depois do fechamento do famoso centro de asilo Sangatte em Calais, o debate sobre o que fazer com os ‘sem papéis’ tornou-se novamente tóxico. De maneira geral, os refletores se voltaram para o acordo de fronteiras abertas da União Europeia, que o Reino Unido se recusa a assinar, o que significa que os imigrantes podem ir até as selvas de Calais, mas não além. Fontes do Departamento do Interior britânico se dizem satisfeitas com a situação atual.

Dirigindo-se a migrantes da Eritreia na quinta-feira 7, Cécile Bossy, da ONG Médecins du Monde, disse que a intratabilidade da questão significa que França e Inglaterra só puderam concordar em não querer os imigrantes, uma situação cujo significado é a maioria deles sofrer com condições péssimas, sem energia elétrica ou água corrente. “É um problema que ninguém quer enfrentar. A maioria é de candidatos a asilo que querem proteção na Europa”, disse Bossy.

O recente aumento do número de imigrantes, incluindo o influxo de mulheres e crianças, é atribuído de modo geral aos eritreus que fogem do regime feroz do ditador Isaias Afewerki. A expansão da “selva” eritreia antagonizou outros grupos de imigrantes que disputam os melhores lugares para se infiltrar no porto bem guardado. Entre os alvos mais valorizados está um grande estacionamento de caminhões em ZI des Dunes, a leste de Calais, onde os motoristas descansam à noite antes de partir para a Inglaterra. Ele se tornou a fonte de tumultos na semana passada, quando um grande grupo de sudaneses impediu a entrada de eritreus.

A população imigrante crescente e a tensão associada atraiu elementos radicais da mídia britânica a Calais, e sua cobertura anti-imigrantes decepcionou muitos habitantes das selvas. Robel, 24 anos, de Asmara, a capital da Eritreia, disse: “Eles dizem mentiras, desinformação. Eles têm sua própria agenda”.

Outra reação ao tumulto foi a escalada da segurança portuária. Mais policiais antidistúrbios franceses foram despachados para Calais. O Reino Unido atualizou as câmeras de detecção de calor e os equipamentos de rastreamento de veículos no terminal do ferry-boat. Arbustos que costumavam crescer ao lado da Rue des Garennes foram removidos, eliminando a cobertura e custando aos imigrantes momentos valiosos quando tentam embarcar nos caminhões.

No interior da “selva eritreia”, cada vez maior, o consenso entre seus ocupantes é que quase ninguém está conseguindo chegar à Inglaterra. Hussain, 18 anos, disse: “Antes eram 30 por semana, hoje são no máximo três”. A sensação de desespero é tangível. Sob o clarão do sol do meio-dia, podem-se ver figuras penduradas nas cercas ao redor do porto, com 3 metros de altura. Grupos são avistados tentando abrir as portas dos caminhões estacionados, em plena luz do dia. Alguns conseguem entrar, mas são descobertos horas depois.

“Eu estava deitado lá, pensando: ‘Consegui, agora consegui’, mas os cães [farejadores] me encontraram”, disse Abit, 28 anos, do Sudão. Ele tinha um corte no rosto das brigas com eritreus. Outros desistiram dos caminhões. Três quilômetros a oeste da Rue des Garennes, imigrantes tentam enganar a segurança nadando 200 metros até os ferries que aguardam.

Mohammed, 31 anos, da Síria, afirmou que dez amigos usaram essa via perigosa para alcançar a Inglaterra, mas nenhum era da África. “Os negros não gostam de nadar”, disse ele.

De volta à terra, os imigrantes enfrentam outra ameaça: a polícia francesa. Os relatos de brutalidade feitos por moradores das “selvas” são numerosos. Apontando para as dunas de areia próximas do porto, o adolescente Frezgi, de Keren, Eritreia, disse: “Ontem à noite estávamos correndo da polícia e eles atingiram um de nossos amigos, que ficou inconsciente. Outro foi hospitalizado”.

Bossy disse: “Eles estão usando violência com frequência. Imigrantes tiveram braços e pernas quebrados pela polícia, e gás também é usado. Muitas vezes os imigrantes dizem que a violência é pior do que era em seu país”.

A antipatia também é evidente entre parte da população de Calais. Alguns lojistas, segundo os imigrantes, se recusam a atendê-los. O atendimento de saúde é um problema. Apesar do tamanho da comunidade imigrante, só há um médico responsável, como qualquer francês que não tenha seguro-saúde. “Pessoas morreram porque não receberam tratamento em tempo”, disse Bossy.

Muitos morreram antes de alcançar Calais. O caminho da Eritreia até a fronteira da Inglaterra exige atravessar áreas enormes do Saara, seguindo pistas sinuosas pelo Sudão e a Líbia, até o Mediterrâneo. Os sobreviventes descrevem dias sem comida, obrigados a economizar uma garrafa de água por 48 horas. Se a água acabar ou se o caminhão quebrar, é a morte.

Simon, 24, de Asmara, um veterano com mais de 50 tentativas fracassadas de embarcar em um caminhão nos últimos quatro meses, disse: “Todo mundo morreu no caminhão atrás do nosso, 21 pessoas. Eles ficaram sem água”. Outros descrevem jipes sobrecarregados que capotam nas dunas e seus ocupantes desaparecem.

“Dois morreram no meu caminhão. Uma mulher ao meu lado ficou desidratada”, disse Sammy, também da capital da Eritreia. Seu amigo descreveu como os passageiros homens pediam que as viajantes mulheres lhes entregassem sua urina, enquanto se recusavam a compartilhar a deles.

Ninguém sabe quantos eritreus morreram no caminho. Pelo menos oito morreram em Calais este ano. O último poderia ser um jovem de 17 anos, Ahmed Abdullah, também de Asmara, que telefonou para amigos há duas semanas, dizendo ter subido na traseira de um ônibus com destino ao Reino Unido a 20 quilômetros de Calais que rumava para o porto. Foi a última vez que ouviram falar em Abdullah.

“Não sabemos se ele está na Inglaterra ou se morreu”, disse Simon.

Ninguém contou à mãe dele que seu filho adolescente tinha desaparecido. Uma regra na “selva” é que os habitantes devem sempre dizer a suas famílias que estão seguros. A taxa atual para a travessia do Saara é de 1.700 libras, e a maioria das famílias sacrificou suas economias para apostar em uma vida melhor para os filhos.

De modo notável, porém, o clima predominante entre os imigrantes é um otimismo incansável. Todos os entrevistados acreditam que chegarão à Inglaterra. Esta noite eles irão de novo, avaliando se é melhor nadar, arriscar a sorte na Rue des Garennes ou procurar pontos fracos na Avenue du Commandant Cousteau. Fathi, 19 anos, que acredita ter feito cem tentativas de abordar um caminhão, sorri para mim: “Dirija com segurança, nos veremos em Londres”.

Leia mais em Guardian.co.uk

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