Mundo

O atentado em Barcelona e as estratégias do Estado Islâmico

Há uma lógica torpe por trás dos ataques realizados pelo EI. Três textos ajudam a entendê-la

Apoie Siga-nos no

Homens em uma van avançaram nesta quinta-feira 17 contra a multidão de turistas e moradores de Barcelona nas Ramblas, ruas que estão entre os mais visitados pontos da cidade espanhola. Poucas horas após o atentado, que era tratado como terrorista pelas autoridades da Catalunha, o Estado Islâmico reivindicou a autoria do ataque por meio de um informe despachado na Amaq, a “agência de notícias” do autointitulado califado. O balanço inicial do ataque registra 13 mortos e ao menos 60 feridos, muitos deles gravemente. 

O atentado é mais um na lista de muitos ataques que o grupo realizou na Europa desde junho de 2014, quando o califado foi declarado. Barcelona se junta a cidades como Berlim, Paris, Bruxelas, Copenhague, Londres, Nice, Estocolmo, Manchester, entre outras que foram alvo recente. 

Como em todos os atentados, múltiplas razões levaram os responsáveis a agir, mas a sequência de ataques serve para exemplificar a estratégia desta entidade chamada Estado Islâmico, que é uma complexa mistura entre grupo terrorista, facção insurgente e movimento ideológico.

A terceira geração do jihadismo

O Estado Islâmico compõe um fenômeno chamado de jihadismo de terceira geração, ou a terceira onda do jihadismo internacional. A primeira geração dos jihadistas se estabeleceu no Afeganistão, no combate à União Soviética, que invadiu o país em 1979. Era um movimento que recebia apoio de potências ocidentais (vivia-se a Guerra Fria) e que tinha como figuras de destaque Osama bin Laden, Abdullah Azzam, Ayman al-Zawahiri e Omar Abdel-Rahman (o xeique cego), entre muitos outros.

A segunda geração do jihadismo é personificada pela Al-Qaeda, organização comandada por Bin Laden e Zawahiri. Dois aspectos são essenciais na caracterização da Al-Qaeda como a segunda onda do jihadismo: 1) seu alvo prioritário é o “inimigo distante”, os EUA; e 2) trata-se de uma organização altamente hierarquizada, na qual Bin Laden e Zawahiri tinham (e tem no caso do segundo) grande controle sobre o grupo e no qual líderes regionais também exerciam grande influência.

O Estado Islâmico é uma “evolução” desses fenômenos, que está intrinsecamente ligada às duas primeiras gerações do jihadismo. Exemplo disso: Abu Musab al-Zarqawi, o fundador do grupo precursor do Estado Islâmico, conheceu Osama Bin Laden no Afeganistão e, depois, liderou a Al-Qaeda no Iraque, que se metamorfoseou no Estado Islâmico atual. As três gerações de jihadistas estão, assim, interligadas e são indissociáveis.

Chamado para a Resistência Islâmica Global

Três textos podem ser classificados como essenciais para se tentar entender o comportamento do Estado Islâmico. O mais importante deles é o livro de 1,6 mil páginas publicado em 2004 por Abu Musab al-Suri e conhecido como Chamado para a Resistência Islâmica Global (em inglês Call to Global Islamic Resistance)

O “Chamado” é uma espécie de manual da jihad. Há trechos traduzidos para o inglês e analisados nos livros Architect of Global Jihad, do historiador norueguês Brynjar Lia, e A Terrorist’s Call to Global Jihad, do norte-americano Jim Lacey.

Leia também:
“O islã está em processo de transformação”
O automóvel como arma terrorista

Al-Suri, nascido na Síria como Mustafa Setmariam Nasar, desenvolve no livro uma dupla estratégia militar para levar a cabo a “guerra santa”. A primeira é a de abrir novas frentes de batalha com o inimigo, que tem por objetivo “liberar o território e estabelecer uma base de operações nele, criando a fundação política e legal de uma potência muçulmana”. Para empreender essa estratégia, Al-Suri descreve uma série de condições geográficas, políticas e populacionais que o novo território deve deter.

A segunda estratégia é a da jihad solo. Al-Suri prega uma resistência sem líderes e a transformação do jihadismo global em um sistema, não organização (System, not organization ou Nizam, la tanzim). Para Al-Suri, a Al-Qaeda não era um grupo, mas sim uma metodologia, um chamado ou uma referência. Há duas ideias centrais nesta segunda estratégia militar: indicar à nova geração da Al-Qaeda como criar pequenas células autônomas, sem ligações diretas ou apoio de grupos estabelecidos, e/ou tornar os jihadistas capazes de empreender uma espécie de terrorismo individual.

Gerenciando a Selvageria

O segundo texto decisivo na ideologia do Estado Islâmico é conhecido como Gerenciando a Selvageria: O estágio mais crítico pelo qual a ummah vai passar (The Management of Savagery: The Most Critical Stage Through Which the Ummah Will Pass). Escrito em 2004 por um teórico jihadista conhecido como Abu Bakr Naji, o texto foi traduzido para o inglês em 2006 por Will McCants.

Naji descreve os estágios pelos quais a ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) deveria passar, em sua visão, antes de estabelecer um estado islâmico. São três estágios no alvo prioritário, formado pelos países de maioria muçulmana.

O primeiro estágio é o da “vexação e exaustão”, no qual os atentados têm como objetivo 1) “exaurir as forças do inimigo”, realizando ataques múltiplos, mesmo que de escala pequena, deixando o inimigo “impossibilitado de respirar”; 2) atrair jovens para a jihad por meio de operações midiáticas; 3) tirar as regiões escolhidas do controle dos regimes que as governam; 4) preparar os “grupos avançados” psicológica e praticamente para “gerenciar a selvageria”.

O gerenciamento da selvageria é o segundo estágio. A ideia de Al-Suri com a fase de “vexação e exaustão” é implodir a ordem estabelecida e substituí-la por outra nos moldes dos desejos dos jihadistas. Um exemplo de estado de selvageria citado por ele é o Afeganistão pós-guerra civil, que acabou tomado pelo Talibã. Os objetivos desse segundo estágio são múltiplos. Vão desde ações de governança, como providenciar segurança, alimentação, cuidados médicos e justiça, até atos militares, como estabelecer um exército não só capaz de proteger as fronteiras como de atacar os inimigos.

O terceiro estágio é o estabelecimento de um estado islâmico. Os países que estão fora do bloco prioritário também são alvos. Eles devem permanecer, entretanto, no primeiro estágio, o da “a vexação e exaustão”, uma vez que Suri reconhece que não haverá caos e selvageria nesses locais “devido à força dos regimes e à força de sua centralização”. A ideia é que os jihadistas presentes nesses locais continuem com a tática de vexação e exaustão enquanto aguardam “a vitória vinda de fora”, ou seja, das regiões em que a selvageria foi criada e posteriormente gerenciada.

Tão importante quanto a estratégia dos estágios presentes na obra de Al-Suri é a defesa do uso de violência extrema. O teórico afirma que não é possível “avançar de um estágio para outro a não ser que o começo de um estágio contenha uma fase de massacrar o inimigo e fazê-lo [se sentir] assustado”. Há na obra uma sessão dedicada a justificar o uso da violência, inclusive contra outros muçulmanos, que tem como objetivo combater a “apostasia”.

Leia também:
O Estado Islâmico veio para ficar
Colapso do Estado Islâmico pode abrir guerra ampla no Oriente Médio
 

“Se não formos violentos na nossa jihad e se a suavidade nos tomar, isso será um fator importante na perda do elemento de força”, escreve Al-Suri. Nesta seção, o teórico insiste que o inimigo deve “pagar o preço” por seus atos e que qualquer ataque deve ser respondido, ainda que leve anos. Ao explicar isso, Al-Suri descreve o sequestro de diplomatas egípcios como réplica a um hipotético assassinato de jihadistas. “A política de violência deve também ser seguida se as demandas não forem atendidas, e os reféns devem ser liquidados de uma maneira terrível, que vai colocar medo nos corações do inimigo e de seus apoiadores”

Durante todo o texto há, entretanto, recomendações a respeito do uso da violência. Al-Suri diz que os alvos prioritários devem ser interesses econômicos, principalmente petróleo, mas recomenda a “diversificação” dos alvos na fase de “vexação e exaustão”. Entre suas sugestões estão bancos, resorts turísticos e autores “apóstatas”.

Para não deixar dúvidas a respeito da necessidade da violência extrema, Al-Suri afirma que o aumento da violência “não é a pior coisa que pode ocorrer”. Na verdade, afirma ele, “o mais abominável dos níveis de selvageria é menos [abominável] que a estabilidade sob a ordem do infiel em vários graus”.

A extinção da zona cinzenta

Um terceiro texto essencial para entender a estratégia do Estado Islâmico é o editorial A extinção da zona cinzenta, publicado na sétima edição da revista eletrônica Dabiq. Não há uma definição clara a respeito do que é a zona cinzenta, mas a ideia por trás do conceito fica evidente com a leitura do texto.

Para os ideólogos do Estado Islâmico, o mundo é maniqueísta, preto ou branco, e só se pode estar em um de dois lados: o dos verdadeiros muçulmanos ou o dos infiéis. Na zona cinzenta estão os “hipócritas e os inovadores depravados”, grupo que basicamente inclui o mais de 1 bilhão de muçulmanos que não são terroristas.

No primeiro parágrafo, o editorial cita o 11 de Setembro e o Bin Laden. “Como o xeique Osama bin Laden disse: ‘O mundo hoje está dividido em dois campos. Bush falou a verdade quando disse ‘ou você está conosco ou você está com os terroristas’. Significava: ou você está com a cruzada ou você está com o islã”.

A chamada Primavera Árabe, momento no qual milhões de muçulmanos foram às ruas protestar contra governos autoritários e pedir liberdade e justiça social, começou a “esfriar” a destruição da zona cinzenta, afirma o editorial, mas a fundação do Estado Islâmico como entidade física viria para acelerar este processo.

A fundação do Estado Islâmico abreviaria a destruição da zona cinzenta por dois motivos. Em primeiro lugar porque “ao reviver o grande corpo do islã, nenhum muçulmano tem qualquer desculpa para ser independente desta entidade que o incorpora e faz a guerra em seu nome contra os infiéis”. Como a “neutralidade” seria um grande pecado que condenaria qualquer muçulmano que não aderisse ao Estado Islâmico, afirma o editorial, os muçulmanos no Ocidente “rapidamente se veriam entre uma de duas escolhas” – aderir ao grupo ou aos infiéis.

Em segundo lugar, a criação de uma entidade islâmica apressaria o fim da zona cinzenta porque “a presença do califado magnifica o impacto político, social, econômico e emocional de qualquer operação levada a cabo pelos mujahidin contra os enfurecidos cruzados”, afirma o texto. Este impacto ampliado, prossegue o editorial, “compele os cruzados a ativamente destruir a zona cinzenta eles mesmos”.

Alguns atribuem o terrorismo à “loucura”, mas, como se vê, por trás de toda a ação do Estado Islâmico – da criação do califado aos atentados no Ocidente, passando pela brutal violência usada no Oriente Médio – há por trás dela uma estratégia bem pensada e uma lógica de ampliar seus danos. Isso torna o Estado Islâmico um fenômeno muito mais complexo e difícil de ser debelado.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar