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O julgamento de Morsi não é legítimo

Há um caso contra o presidente deposto, mas o processo é parte de um plano para deslegitimar a Irmandade Muçulmana

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Raros, julgamentos de ex-presidentes deveriam ser a celebração de Estados neutros, nos quais a importância política de uma figura não é levada em conta pela Justiça, exatamente como determina o princípio da neutralidade. No caso do Egito, que nesta segunda-feira 4 começou julgar Mohamed Morsi, deposto em julho, o processo é a subversão da neutralidade. O julgamento, que continuará em 8 de janeiro, não passa de uma clamorosa farsa.

É fato que haveria um caso contra Morsi, integrante da Irmandade Muçulmana, a principal organização a seguir o islã político no Egito. O presidente derrubado aparecerá no tribunal da Academia de Polícia do Egito, nas cercanias do Cairo, para ouvir acusações de incitação à violência e ao assassinato.

Os fatos ocorreram em 4 de dezembro de 2012, quando opositores do então presidente Morsi se juntaram em frente ao palácio presidencial, conhecido como Ittihadiya, para protestar contra a declaração constitucional emitida por ele em novembro de 2012. Naquele mês, em uma tentativa de evitar que a Assembleia Constituinte, dominada pela Irmandade, fosse dissolvida, Morsi deu a si próprio e a suas decisões imunidade judicial. A medida indignou a oposição. Em dezembro, durante a manifestação no palácio, a polícia se recusou a proteger Morsi. A Irmandade Muçulmana, então, enviou alguns de seus integrantes para o local. O que se viu foi um show de horrores. Houve muita violência dos dois lados e há relatos críveis de que os irmãos muçulmanos montaram câmaras de tortura contra seus opositores. Pelo menos dez pessoas morreram, sendo quatro integrantes da Irmandade Muçulmana. Nos dias que se seguiram, Morsi e alguns de seus auxiliares deram declarações públicas apoiando a “proteção” do palácio presidencial.

Se é fato que há um caso contra Morsi, é fato também que o julgamento é parte de um processo promovido pelo atual regime cívico-militar para tentar erradicar a Irmandade Muçulmana do país. Logo após o golpe, a polícia e o Exército mataram quase mil pessoas no Cairo ao dispersar dois protestos na praças Rabaa Al-Adawiya e Al-Nahda. Canais de tevê ligados à Irmandade foram fechados e líderes do grupo foram presos e exibidos como troféus em uma imprensa que adota tons cada vez mais totalitários. A retórica da “guerra ao terror” está de volta e a organização que até julho governava o país é tachada de terrorista e traidora. É verdade que a liderança da Irmandade contribuiu para esta situação ao incentivar mais protestos (que inevitavelmente acabam em violência) e principalmente ao não condenar ataques a cristãos coptas e alvos estatais realizados em cidades do interior, na capital, e na Península do Sinai, mas isso não inocenta o regime. Trata-se de um processo político.

“O Judiciário foi completamente politizado nos últimos quatro meses e está sendo usado de forma muito inteligente pelas autoridades militares como ferramenta para destruir os islamistas”, afirmou a CartaCapital o ativista Hossam Bahgat, diretor executivo da ONG Iniciativa Egípcia para Direitos Individuais, uma das que registrou as câmaras de tortura na batalha do palácio presidencial e pediu diversas vezes a responsabilização dos culpados. “Morsi será julgado pelos assassinatos de dez pessoas, enquanto ninguém está sendo julgado pela morte de mil pessoas em Rabaa. Esses dois elementos, o ataque judicial motivado politicamente e o indiciamento seletivo infelizmente significam que este julgamento não terá muita credibilidade”, afirma Bahgat.

A perseguição à Irmandade pode ser entendida com um breve retorno à história recente do Egito. Após a queda de Hosni Mubarak, em 2011, as Forças Armadas tinham uma espécie de acordo tácito com os irmãos muçulmanos. Isso criou as condições para que uma transição política ocorresse. O fim da transição foi marcado pela eleição de Morsi, mas, uma vez no governo, a Irmandade demonstrou incompetência e um crescente autoritarismo. Isto fez a oposição a ela se mobilizar e o clima político se tornar instável. Os militares, então, passaram a enxergar a Irmandade como uma ameaça a seus enormes interesses econômicos. Desta combinação de fatores surgiu a aliança entre os militares e os setores anti-Irmandade, presentes na burocracia estatal, nas forças de segurança, na mídia, na elite econômica e no Judiciário.

O julgamento de Morsi é, neste contexto, mais uma das ferramentas usadas pelo atual regime para tentar deslegitimar a Irmandade Muçulmana perante a sociedade egípcia. Acabar com o grupo, que resistiu a oito décadas de repressão sob três ditadores, provavelmente é uma tarefa impossível. A saída para o atual impasse passará, em maior ou menor medida, pela reinclusão dos irmãos muçulmanos no jogo político. Quando, e se, isso ocorrer, eles provavelmente estarão mais fracos politicamente. Para os setores seculares anti-Irmandade do Egito, já será uma vitória significativa.

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