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O pequeno Catar quer se tornar uma potência

Misturando oportunismo e ambição, o minúsculo Catar ganha influência internacional por meio da economia, da política e até do esporte

O presidente do Paris Saint-Germain, Nasser Al-Khelaifi, apresenta o atacante sueco Ibrahimovic. Foto: Bertrand Guay / AFP
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Na semana passada, o Paris Saint-Germain, clube médio da França, anunciou a contratação de dois dos principais jogadores do Milan, da Itália – o zagueiro da Seleção Brasileira Thiago Silva e o atacante sueco Zlatan Ibrahimovic. As negociações chamaram a atenção pois o clube francês costumava ser vendedor de jogadores e não destino final de craques dos grandes clubes europeus, como o Milan. Este cenário mudou em maio de 2011, quando o PSG foi adquirido pela Autoridade de Investimento do Catar (QIA em inglês), um obscuro fundo financeiro do país árabe. Dono de verba capaz de alterar a lógica de grandeza no futebol europeu, o QIA é apenas parte de uma estratégia global do governo do Catar para ganhar influência na economia e na política mundial.

A expansão dos horizontes do Catar tem como idealizador o emir do país. Hamad bin Khalifa al-Thani comanda a minúscula península de 1,9 milhão de habitantes (dos quais apenas entre 200 mil e 300 mil são nativos) desde 1995, quando depôs seu pai. Ele governa o Catar auxiliado pelo primo e primeiro-ministro, Hamad bin Jassim, e pelo príncipe-herdeiro, Tamim. Não há clareza quanto à separação entre o que pertence à família e o que pertence ao país. Criado em 2005, o QIA é um fundo soberano cuja função é administrar a renda proveniente das exportações de petróleo e, principalmente, de gás do Catar. Não é pouco dinheiro. Hoje o Catar tem a terceira maior reserva de gás natural do mundo e é o maior exportador global de gás liquefeito. Em termos de PIB per capita, o Catar é o país mais rico do mundo. Paralelamente ao QIA e a suas subsidiárias agem fundos privados, como o Mayhoola for Investment, também ligado à família real.

A bonança dos recursos naturais, combinada com a crise na Europa, abriu espaço para os investimentos do Catar. Hoje, a família real e/ou o governo controlam uma série de marcas conhecidas, como a grife italiana Valentino, a loja de departamentos Harrods, a rede de supermercados Sainsbury’s, ambas do Reino Unido, e parte do estúdio americano Miramax. Há investimentos ainda em 17% das ações da montadora alemã Volskwagen; 13% do grupo de mídia francês Lagardère (dono das revistas Paris Match, Elle e da editora Hachette, do sucesso Crepúsculo); 8,4% da Iberdrola, a maior fornecedora de energia elétrica da Espanha; 6% do banco Credit Suisse; 5,2% da joalheria americana Tiffany; 5% do banco Santander Brasil; e 5% da Veolia, a maior empregadora privada da França. O portfólio conta ainda com uma imensa quantidade de imóveis, que fazem do Catar um dos principais investidores no setor imobiliário do mundo. A aquisição mais proeminente dos últimos tempos foi a Vila Olímpica de Londres. Após os Jogos Olímpicos deste ano, cerca de mil apartamentos usados pelos atletas serão reformados e transformados no primeiro bairro residencial do país a ser administrado diretamente como um investimento.

 

 

O Catar tem uma explicação para seus investimentos. Em sua página oficial, o fundo soberano do Catar diz que sua função é “fortalecer a economia do país por meio da diversificação em novas categorias de bens”. Essa tese é reforçada pela atuação da Qatar Foundation. O objetivo da fundação é “apoiar o Catar em sua jornada de uma economia de carbono para uma economia de conhecimento”. As duas principais iniciativas da Qatar Foundation (que patrocina o Barcelona, clube espanhol de futebol) para reduzir a dependência dos recursos naturais foram criar uma zona franca de pesquisa e desenvolvimento em Doha, onde atuam empresas como a Microsoft e a Shell, e atrair campi de universidades ocidentais, como a americana Cornell e a francesa HEC. Há, entretanto, muitas desconfianças sobre a forma como o Catar amplia seu alcance.

Para muitos críticos do Catar, os inúmeros investimentos no exterior são uma tentativa de comprar influência. O fato de o país investir em setores estratégicos, como água, energia, mídia e bancos, reforça esses argumentos. “O Catar provavelmente está tentando comprar boa vontade”, diz Mark N. Katz especialista em Golfo Pérsico da universidade George Mason, dos Estados Unidos. “Eles são muitos ricos, mas muito fracos, então vão tentar comprar boa vontade onde puderem e de formas muito criativas”, diz.

Leia também:

O Catar usa a boa vontade adquirida para evitar ser espremido por seus dois vizinhos mais fortes, a Arábia Saudita e o Irã. A influência econômica é, na verdade, um complemento à aliança que o pequeno país mantém com os Estados Unidos. Desde 2003, o governo americano mantém duas importantes instalações no Catar. Ao sul de Doha está a base de Al-Udeid, sede o Comando Central dos Estados Unidos, responsável por todas as operações norte-americanas no Oriente Médio, Norte da África e Ásia Central (incluindo o Afeganistão). Também ao sul da capital está Sayliyah, a maior base norte-americana de reposicionamento de ativos militares fora dos Estados Unidos. Encorajado pela parceria, o Catar se tornou muito ativo diplomaticamente. O país mediou acordos entre o grupo palestino Hamas e o governo da Jordânia, entre os radicais do Talibã afegão e os Estados Unidos e, assim, se tornou um incômodo aos vizinhos.

Dentro do Oriente Médio sobram desconfianças quanto ao Catar. O país criou e financia até hoje a Al-Jazeera, um canal de televisão via satélite que teve e tem papel fundamental na abertura política do mundo árabe. A pluralidade de opiniões divulgada pela tevê provocou críticas de todos os lados. Para setores seculares, a Al-Jazeera dá espaço demais a partidos islâmicos. Para os governos autoritários da região, o canal foi um dos culpados pela instabilidade de onde surgiu a Primavera Árabe. A atuação do governo do Catar (e da Al-Jazeera) diante dos protestos serviu para ampliar o foco sobre o país. Hamad bin Khalifa al-Thani liderou a ajuda aos rebeldes da Líbia que depuseram o ditador Muammar Khadafi e sugeriu uma intervenção semelhante na Síria para destronar Bashar al-Assad.

Katz explica que a atuação do governo e da Al-Jazeera são pragmáticas. Ao dar espaço aos islamistas, o Catar evita críticas desses grupos a si próprio. Ao apoiar a Primavera Árabe, não perde o bonde da história e, ao mesmo tempo, tira os incentivos para que revolucionários árabes de outros países apoiem forças similares dentro do Catar. Eventualmente, o desfecho da Primavera Árabe pode criar tensões dentro do Catar. “Se os governos populares que chegaram e chegarem ao poder no Egito, Líbia, Tunísia e talvez Síria tiverem sucesso, em algum ponto vai surgir, mesmo com o apoio do Catar aos revolucionários, a questão: por que essas mudanças não ocorrem no Golfo?”, diz Katz. O governo do Catar está preocupado com isso. Em novembro do ano passado, o emir anunciou a realização de eleições, em 2013, para o Conselho Shura, uma espécie de conselho consultivo para suas decisões. Ao se antecipar à chegada da Primavera Árabe ao Golfo Pérsico, o emir do Catar, governante de um país onde partidos políticos e sindicatos são proibidos, tenta criar as “credenciais democráticas” que eventualmente podem ser exigidas pela população. Se conseguirá isso, só o tempo vai dizer.

Mesmo diante de tantas polêmicas e dúvidas quanto a suas intenções, o Catar tem visto sua influência internacional apenas aumentar. A ânsia do país por se integrar ao resto do mundo, no entanto, pode ter deixado uma brecha para a perda de prestígio. Escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022, o Catar enfrenta polêmicas na organização do evento. Segundo a Human Rights Watch, centenas de milhares de trabalhadores estrangeiros, a maioria do sul da Ásia, são vítimas de exploração e abuso por parte de empregadores e alguns estão sujeitos até a trabalhos forçados. Além disso, o Catar é acusado de ter vencido a disputa contra Estados Unidos, Japão, Austrália e Coreia do Sul, graças a atos de corrupção. Pressionada pela mídia e por anunciantes, a tradicionalmente opaca Fifa, controladora do futebol mundial, ordenou uma investigação externa sobre o processo de escolha. Se informações desabonadoras surgirem e o Catar perder o direito de sediar o maior torneio esportivo do mundo, a imagem do país sofrerá um duro abalo.

Na semana passada, o Paris Saint-Germain, clube médio da França, anunciou a contratação de dois dos principais jogadores do Milan, da Itália – o zagueiro da Seleção Brasileira Thiago Silva e o atacante sueco Zlatan Ibrahimovic. As negociações chamaram a atenção pois o clube francês costumava ser vendedor de jogadores e não destino final de craques dos grandes clubes europeus, como o Milan. Este cenário mudou em maio de 2011, quando o PSG foi adquirido pela Autoridade de Investimento do Catar (QIA em inglês), um obscuro fundo financeiro do país árabe. Dono de verba capaz de alterar a lógica de grandeza no futebol europeu, o QIA é apenas parte de uma estratégia global do governo do Catar para ganhar influência na economia e na política mundial.

A expansão dos horizontes do Catar tem como idealizador o emir do país. Hamad bin Khalifa al-Thani comanda a minúscula península de 1,9 milhão de habitantes (dos quais apenas entre 200 mil e 300 mil são nativos) desde 1995, quando depôs seu pai. Ele governa o Catar auxiliado pelo primo e primeiro-ministro, Hamad bin Jassim, e pelo príncipe-herdeiro, Tamim. Não há clareza quanto à separação entre o que pertence à família e o que pertence ao país. Criado em 2005, o QIA é um fundo soberano cuja função é administrar a renda proveniente das exportações de petróleo e, principalmente, de gás do Catar. Não é pouco dinheiro. Hoje o Catar tem a terceira maior reserva de gás natural do mundo e é o maior exportador global de gás liquefeito. Em termos de PIB per capita, o Catar é o país mais rico do mundo. Paralelamente ao QIA e a suas subsidiárias agem fundos privados, como o Mayhoola for Investment, também ligado à família real.

A bonança dos recursos naturais, combinada com a crise na Europa, abriu espaço para os investimentos do Catar. Hoje, a família real e/ou o governo controlam uma série de marcas conhecidas, como a grife italiana Valentino, a loja de departamentos Harrods, a rede de supermercados Sainsbury’s, ambas do Reino Unido, e parte do estúdio americano Miramax. Há investimentos ainda em 17% das ações da montadora alemã Volskwagen; 13% do grupo de mídia francês Lagardère (dono das revistas Paris Match, Elle e da editora Hachette, do sucesso Crepúsculo); 8,4% da Iberdrola, a maior fornecedora de energia elétrica da Espanha; 6% do banco Credit Suisse; 5,2% da joalheria americana Tiffany; 5% do banco Santander Brasil; e 5% da Veolia, a maior empregadora privada da França. O portfólio conta ainda com uma imensa quantidade de imóveis, que fazem do Catar um dos principais investidores no setor imobiliário do mundo. A aquisição mais proeminente dos últimos tempos foi a Vila Olímpica de Londres. Após os Jogos Olímpicos deste ano, cerca de mil apartamentos usados pelos atletas serão reformados e transformados no primeiro bairro residencial do país a ser administrado diretamente como um investimento.

 

 

O Catar tem uma explicação para seus investimentos. Em sua página oficial, o fundo soberano do Catar diz que sua função é “fortalecer a economia do país por meio da diversificação em novas categorias de bens”. Essa tese é reforçada pela atuação da Qatar Foundation. O objetivo da fundação é “apoiar o Catar em sua jornada de uma economia de carbono para uma economia de conhecimento”. As duas principais iniciativas da Qatar Foundation (que patrocina o Barcelona, clube espanhol de futebol) para reduzir a dependência dos recursos naturais foram criar uma zona franca de pesquisa e desenvolvimento em Doha, onde atuam empresas como a Microsoft e a Shell, e atrair campi de universidades ocidentais, como a americana Cornell e a francesa HEC. Há, entretanto, muitas desconfianças sobre a forma como o Catar amplia seu alcance.

Para muitos críticos do Catar, os inúmeros investimentos no exterior são uma tentativa de comprar influência. O fato de o país investir em setores estratégicos, como água, energia, mídia e bancos, reforça esses argumentos. “O Catar provavelmente está tentando comprar boa vontade”, diz Mark N. Katz especialista em Golfo Pérsico da universidade George Mason, dos Estados Unidos. “Eles são muitos ricos, mas muito fracos, então vão tentar comprar boa vontade onde puderem e de formas muito criativas”, diz.

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O Catar usa a boa vontade adquirida para evitar ser espremido por seus dois vizinhos mais fortes, a Arábia Saudita e o Irã. A influência econômica é, na verdade, um complemento à aliança que o pequeno país mantém com os Estados Unidos. Desde 2003, o governo americano mantém duas importantes instalações no Catar. Ao sul de Doha está a base de Al-Udeid, sede o Comando Central dos Estados Unidos, responsável por todas as operações norte-americanas no Oriente Médio, Norte da África e Ásia Central (incluindo o Afeganistão). Também ao sul da capital está Sayliyah, a maior base norte-americana de reposicionamento de ativos militares fora dos Estados Unidos. Encorajado pela parceria, o Catar se tornou muito ativo diplomaticamente. O país mediou acordos entre o grupo palestino Hamas e o governo da Jordânia, entre os radicais do Talibã afegão e os Estados Unidos e, assim, se tornou um incômodo aos vizinhos.

Dentro do Oriente Médio sobram desconfianças quanto ao Catar. O país criou e financia até hoje a Al-Jazeera, um canal de televisão via satélite que teve e tem papel fundamental na abertura política do mundo árabe. A pluralidade de opiniões divulgada pela tevê provocou críticas de todos os lados. Para setores seculares, a Al-Jazeera dá espaço demais a partidos islâmicos. Para os governos autoritários da região, o canal foi um dos culpados pela instabilidade de onde surgiu a Primavera Árabe. A atuação do governo do Catar (e da Al-Jazeera) diante dos protestos serviu para ampliar o foco sobre o país. Hamad bin Khalifa al-Thani liderou a ajuda aos rebeldes da Líbia que depuseram o ditador Muammar Khadafi e sugeriu uma intervenção semelhante na Síria para destronar Bashar al-Assad.

Katz explica que a atuação do governo e da Al-Jazeera são pragmáticas. Ao dar espaço aos islamistas, o Catar evita críticas desses grupos a si próprio. Ao apoiar a Primavera Árabe, não perde o bonde da história e, ao mesmo tempo, tira os incentivos para que revolucionários árabes de outros países apoiem forças similares dentro do Catar. Eventualmente, o desfecho da Primavera Árabe pode criar tensões dentro do Catar. “Se os governos populares que chegaram e chegarem ao poder no Egito, Líbia, Tunísia e talvez Síria tiverem sucesso, em algum ponto vai surgir, mesmo com o apoio do Catar aos revolucionários, a questão: por que essas mudanças não ocorrem no Golfo?”, diz Katz. O governo do Catar está preocupado com isso. Em novembro do ano passado, o emir anunciou a realização de eleições, em 2013, para o Conselho Shura, uma espécie de conselho consultivo para suas decisões. Ao se antecipar à chegada da Primavera Árabe ao Golfo Pérsico, o emir do Catar, governante de um país onde partidos políticos e sindicatos são proibidos, tenta criar as “credenciais democráticas” que eventualmente podem ser exigidas pela população. Se conseguirá isso, só o tempo vai dizer.

Mesmo diante de tantas polêmicas e dúvidas quanto a suas intenções, o Catar tem visto sua influência internacional apenas aumentar. A ânsia do país por se integrar ao resto do mundo, no entanto, pode ter deixado uma brecha para a perda de prestígio. Escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022, o Catar enfrenta polêmicas na organização do evento. Segundo a Human Rights Watch, centenas de milhares de trabalhadores estrangeiros, a maioria do sul da Ásia, são vítimas de exploração e abuso por parte de empregadores e alguns estão sujeitos até a trabalhos forçados. Além disso, o Catar é acusado de ter vencido a disputa contra Estados Unidos, Japão, Austrália e Coreia do Sul, graças a atos de corrupção. Pressionada pela mídia e por anunciantes, a tradicionalmente opaca Fifa, controladora do futebol mundial, ordenou uma investigação externa sobre o processo de escolha. Se informações desabonadoras surgirem e o Catar perder o direito de sediar o maior torneio esportivo do mundo, a imagem do país sofrerá um duro abalo.

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