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Os pesadelos das refugiadas sírias

O grande temor é o Hezbollah, o grupo xiita aliado de Assad que vasculha o país em busca de dissidentes

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Por Matteo Fagotto, do Vale do Bekaa, em Trípoli, no Líbano


“Eram cinco, com os rostos cobertos por máscaras. Invadiram a casa e subiram a escada. Poucos minutos depois, desceram com meu filho Ali algemado. Eles o levaram embora sem dar explicações. ‘Cale a boca ou a mataremos’, foi a única coisa que me disseram.” Sentada na varanda de sua nova casa no vale do Bekaa, uma região no leste do Líbano que faz fronteira com a Síria, Somaya se esforça para conter as lágrimas enquanto fala sobre a última vez que viu seu filho vivo. Ele tinha 27 anos. Três dias depois de sua detenção, o cadáver de Ali foi encontrado em uma vala perto de Talbiseh, um vilarejo próximo à cidade síria de Homs. “Ele tinha 11 ferimentos de bala no estômago, o braço esquerdo estava quebrado e os dois joelhos tinham sido destruídos”, continua Somaya, com o olhar a vagar pelas montanhas áridas a poucos quilômetros da fronteira.

Depois da morte do filho, oito meses atrás, Somaya mudou-se para o Líbano, onde tenta enfrentar a saudade de seu amado país e o desespero de uma mãe que não encontra paz. “Ali era um simples motorista de táxi, não fazia política. Durante os protestos contra o regime, ele costumava ficar em casa porque não queria se meter em encrencas”, continua. “Desde sua morte, eu rezo todos os dias para Deus nos livrar de Assad o mais rápido possível.”

A história de Somaya não é única. Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (UNHCR na sigla em inglês), desde o início da revolução contra o presidente sírio Bashar al-Assad, pelo menos 153.505 refugiados se abrigaram no Líbano, na maioria crianças e mulheres. São quase todas donas de casa, mas também há estudantes, professoras, aposentadas e viúvas. Para fugir de uma revolução que lentamente se transformou em guerra civil em plena escala, muitas atravessaram a fronteira ilegalmente, desafiando os tiros das forças de segurança para salvar a vida de seus filhos. Hoje vivem dispersas entre a cidade de Trípoli, ao norte, e as inúmeras aldeias ao longo da fronteira síria. “Esta guerra é um fardo sobre nossos ombros. Muitas de nós perdemos os maridos e os filhos, e agora temos de cuidar das famílias sozinhas”, explica Rasha, 27 anos, que fugiu da aldeia de Soran em 1 de março de 2012 e hoje está hospedada com parentes em um apartamento de dois quartos em Bekaa.

 

Assim como ela, dezenas de milhares de refugiados sírios (53.191, segundo o UNHCR) ainda não estão registrados e vivem em situações desesperadas. Abrigados em porões, celeiros ou tendas, eles sobrevivem graças às escassas rações alimentares distribuídas por ONGs locais. O governo libanês, que nunca assinou a Convenção de Genebra sobre Refugiados de 1951 e não tem uma legislação específica para lidar com eles, até agora se recusou a montar campos de refugiados para os sírios, por medo de que eles sejam infiltrados por grupos rebeldes armados.

Para sobreviver, alguns dos mais jovens trabalham na agricultura, ganhando apenas mil libras libanesas por hora (cerca de 0,60 centavos de dólar). “Não temos dinheiro para comprar nada”, queixa-se Wurud, uma mulher de 50 anos da aldeia síria de Zahra, que chegou ao Líbano com outros 22 parentes. “Meus filhos são tratados como escravos. Eles ganham a metade do que ganha um libanês, pelo dobro do trabalho.” Sem meios para pagar uma acomodação decente, a família de Wurud vive em um estábulo de tijolos, sem janelas ou piso, com alguns colchões como únicos móveis. “Poucos dias depois de chegarmos aqui, meu marido sofreu um infarto”, continua Wurud, indicando um homem de meia-idade deitado no chão ao seu lado. A poucos metros de distância, sua filha Tara, de 25 anos, está sentada sobre uma pilha de tijolos, claramente distraída em seus pensamentos. O marido de Tara decidiu ficar na Síria para cuidar de seus pais, mas morreu alguns dias depois que ela partiu. Até agora ninguém teve coragem de dar a notícia a Tara. Sem saber de nada, ela continua esperando que ele telefone.

Muitas dessas mulheres refugiadas no Líbano estão a meio caminho entre prisioneiras e fantasmas, tentando evitar contatos com a população local por medo de ser apanhadas pelos agentes do Hezbollah, a milícia xiita e partido político aliado de Assad que constantemente vasculha o país em busca de dissidentes.

“Toda vez que meu marido se atrasa à noite eu fico histérica”, diz Samira, 28 anos, com seus olhos castanhos expressivos brilhando sobre a pele morena. Até seis meses atrás ela vivia em Hama com seus quatro filhos, o mais velho de 11 anos. Seu marido, que apoia a oposição, já havia fugido para o Líbano meses antes. Durante suas noites solitárias quando Hama era bombardeada pelas forças do regime, o único sonho de Samira era unir-se a ele do outro lado da fronteira. “Foi o pior momento da minha vida”, ela conta. “Certa noite os bombardeios foram tão intensos que tivemos de nos esconder no porão. Meus filhos ficaram abalados e não dormiram durante dois dias.” Uma noite, finalmente chegou o tão esperado telefonema. “Meu marido apenas me disse para estar pronta às 6 da manhã. Um amigo dele viria me buscar de carro.” A viagem de 80 quilômetros durou 13 horas intermináveis, durante as quais Samira teve de trocar de carro quatro vezes e pagar 400 dólares para subornar os soldados sírios nos postos de controle no caminho até a fronteira.

Hoje Samira e sua família vivem nos arredores de Trípoli, mas seus problemas estão longe de terminar. As escadas do edifício dilapidado onde eles moram estão cheias de poças d’água e pilhas de entulho, e sua sacada dá para um depósito de lixo. Mesmo assim, o aluguel mensal de 100 dólares é proibitivo para seu marido, que luta para encontrar um emprego no Líbano e está rapidamente ficando sem dinheiro. “Não sabemos como vamos pagar o próximo aluguel”, ela admite antes de estourar em lágrimas. “Sinto falta do meu país.” Seus filhos a abraçam carinhosamente para reconfortá-la.

As famílias que conseguiram chegar a Trípoli tiveram sorte. Habitada predominantemente por sunitas, a cidade se tornou o principal baluarte da oposição síria no Líbano. Aqui os refugiados podem desfrutar de serviços de saúde adequados e uma relativa segurança, mas em Bekaa a situação é totalmente diferente. Dividida entre xiitas, sunitas e cristãos, a região foi o teatro de vários ataques aéreos praticados pelo exército sírio, assim como detenções e sequestros de ativistas políticos e adversários do regime sírio.

O Hezbollah controla a maior parte da região e causa dificuldades para os refugiados e as pessoas que os ajudam. “Eles me visitaram várias vezes para me advertir e revistar a casa, mas eu não tenho medo. O que podem me fazer?”, pergunta Hassan ironicamente, com um olhar desafiador. De meia-idade, com uma barba grisalha curta, Hassan é um libanês que aderiu à causa da revolução desde o início: ele viaja até a fronteira diariamente para receber os novos refugiados e tenta encontrar acomodações para eles nas casas de amigos e parentes. “Para mim é uma missão”, ele explica, sentado em uma cadeira plástica em seu pomar.

Até agora Hassan conseguiu abrigar 2 mil refugiados sírios em uma aldeia de apenas 9 mil habitantes. Seu amigo Mustafah, um libanês de pele clara e sardento, com cabelos ruivos crespos, atualmente hospeda uma família no porão de sua casa. “Em 2006, quando o Líbano foi atacado por Israel, os sírios ajudaram muitos libaneses”, ele explica. “Agora é nossa vez de ajudá-los.”

Uma de suas hóspedes é Mona, uma professora de árabe de 28 anos que escapou de al-Qusayr junto com seu marido e dois filhos pequenos. “Nós fugimos depois que meu cunhado foi morto em um bombardeio. Ele era membro do Exército Livre Sírio”, diz. “Não adiantava ficar lá, estava ficando perigoso demais.” Apesar de hoje ficar em casa o dia todo assistindo à tevê com as crianças, Mona não perdeu a esperança de voltar para a Síria e começar a ensinar de novo. “Muito sangue foi derramado pela liberdade. Se a revolução tiver sucesso, espero que as próximas gerações não desperdicem seus frutos. Essa é a mensagem que eu gostaria de passar para meus alunos.”

Mona não é a única que sente falta da escola. Zaynab, de 16 anos, vem do bairro de Al-Khaldeeye, um dos enclaves da oposição em Homs. Até janeiro passado, ela era a melhor de sua classe. “Eu era muito boa em árabe e ciências”, afirma, esforçando-se para esconder o orgulho. Mas o sonho de Zaynab de ser médica foi abruptamente abortado quando foi obrigada a deixar a escola depois que alguns soldados sequestraram, estupraram e mataram três de suas colegas. Órfã de mãe, hoje Zaynab vive em Trípoli com o pai, o irmão e uma irmã deficiente, de quem ela cuida. Quando recebe alimentos de organizações de caridade, precisa vender uma parte para comprar remédios. Apesar das dificuldades pelas quais está passando, sua fé no futuro continua intacta. “Eu esperava que a revolução fosse rápida e bem-sucedida”, confessa. “Mas continuo esperançosa. Assad cairá em breve e poderemos voltar à Síria vitoriosos.”

Seu otimismo não é compartilhado por outros refugiados, que sentem o peso dos choques intermináveis, mortes e privações. “Não sei como esta guerra vai terminar, não podemos sequer entender quem está lutando contra quem”, queixa-se Badia, uma mulher de 51 anos que veio para o Líbano para tratar sua filha, que sofreu danos no cérebro durante uma batida das forças de segurança em sua casa em Bab Drieb, Homs. “Se isto é a revolução, se significa que não posso sair de casa para comprar um pão, então não a quero.”

Com um irmão que ainda serve o exército, Rasha também está dividida. “Toda vez que ele nos visitava em Soran, minha mãe o obrigava a tirar o uniforme militar”, ela lembra. “Se os rebeldes o vissem vestido daquele jeito o teriam matado imediatamente.” Uma garota inteligente e desiludida, ela não acredita nem no regime atual nem nos revolucionários. Rasha gostaria de viver no Líbano, onde espera que seus filhos recebam uma educação melhor e ela poderia se sentir mais emancipada. “Não importa quem vencerá esta guerra. Na Síria as mulheres não têm direitos desde o dia em que nascem. Como mulher síria, não sei o que significa liberdade.”

Todas as pessoas citadas na reportagem foram fotografadas com o rosto coberto e seus nomes foram alterados por razões de segurança. Pelo mesmo motivo, não são revelados os locais exatos no vale do Bekaa onde ocorreram as entrevistas.

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