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Transgênicos e saúde

A publicação de nova pesquisa precisa provocar um amplo debate público na Europa e na China

'A publicação de uma nova pesquisa sobre o impacto dos OGM precisa provocar um amplo debate público na Europa, na China e entre as sociedades chinesa e europeia', diz Pierre Calame
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Por Pierre Calame*

No cruzamento da reflexão sobre a ética, a ciência, a tecnologia e a governança, o Fórum China Europa se interessou em 2007 e 2010 pelo domínio social das ciências e tecnologias, pelo papel dos consumidores, a bioética e, mais especificamente, pelos cultivos agroalimentares duradouros. Através de diferentes oficinas, notamos uma atitude mais crítica dos europeus que dos chineses em relação à ciência, e certos europeus não hesitaram em questionar o caráter automático dos benefícios da ciência para a sociedade, insistindo na responsabilidade dos pesquisadores sobre o impacto de seus trabalhos e do uso que se faz deles. Alguns falaram até na necessidade de um novo contrato entre a pesquisa científica e a sociedade, considerando que não poderíamos confiar ao Estado as opções tecnológicas. Do lado chinês, expressou-se de modo geral uma maior confiança na ciência e na tecnologia, que pareciam fatores suscetíveis de trazer prosperidade ao país. Em outra oficina, dedicada especificamente aos cultivos agroalimentares duradouros, os europeus manifestaram suas dúvidas sobre a introdução de culturas de plantas geneticamente modificadas, mas a oficina especificamente dedicada aos organismos geneticamente modificados (OGMs) não pôde ser realizada em 2010.

Desde então, os escândalos repetidos que afetam a qualidade da alimentação na China e a eficácia dos controles dessa segurança pelas autoridades públicas tornaram a opinião pública chinesa muito mais sensível ao que as famílias colocam em seus pratos e ao impacto da alimentação sobre a saúde, a ponto de ver ressurgir uma agricultura de proximidade, em que as famílias podem controlar o que comem. Em contraste com a permissividade das autoridades chinesas, as europeias, com seus mecanismos de avaliação científica e independente, previamente à colocação no mercado de novos pesticidas ou novos OGM, pareciam isentas de qualquer censura.

Na realidade, na Europa também se manifestaram dúvidas, cada vez mais numerosas, em relação à neutralidade e à objetividade proclamadas pelas instâncias de avaliação, e o Parlamento Europeu tratou do problema, mostrando os diversos conflitos de interesses nessas instâncias de avaliação: peritos e órgãos de direção aparecem muito ligados ao lobby das firmas de sementes e químicas e do agronegócio. Ainda mais que os exemplos históricos do amianto e do tabaco demonstraram nesses últimos anos que as firmas produtoras negaram os efeitos perigosos para a saúde, não hesitando em financiar cientistas para semear dúvidas sobre todos os estudos científicos que demonstravam, há vários anos, a periculosidade desses produtos. Tudo isto pôs em questão certamente a ideia de um especialista neutro, que se pronuncia com base em uma certeza científica que não sofre qualquer controvérsia.

Um novo passo muito importante acaba de ser dado nesse debate: os testes apresentados até hoje como “científicos” para avaliar o risco de um novo produto são realmente científicos? Não foram concebidos para evitar salientar o perigo potencial dos novos produtos colocados no mercado, sendo sua duração definida não em função do que seria preciso fazer para avaliar esse risco, mas em função dos interesses das firmas de limitar ao máximo o tempo dos estudos para garantir a rentabilidade de sua pesquisa? Acusação gravíssima! Ainda mais grave porque a lei europeia responsabiliza os produtores pelo impacto de seus produtos, exceto… se os conhecimentos científicos não forem suficientes para avaliar esse impacto. Daí é apenas um passo para se pensar que houve cumplicidade entre as grandes empresas e as autoridades de avaliação, com o fim de não ter condições de saber, de maneira que as empresas que colocam no mercado, os especialistas consultados e os responsáveis pelas instâncias de avaliação sejam todos isentados de responsabilidade, em nome de sua ignorância.

E quando descobrimos que os testes supostamente científicos se baseavam em hipóteses que não têm nada de científico, começamos a duvidar cada vez mais da seriedade da perícia. Assim, adotávamos até hoje a hipótese de que um efeito só estava demonstrado quando ele era mais forte conforme a força da dose. Mas todos os estudos convergem para mostrar que, para todos os produtos que têm um impacto no sistema endócrino, uma exposição prolongada a uma dose muito fraca pode ter um efeito mais grave que uma exposição mais curta a uma dose forte. Do mesmo modo, segundo testes oficiais, para que um efeito fosse reconhecido era preciso que ele fosse igual para homens e mulheres: estranha concepção da ciência, na verdade.

Até hoje, empresas e órgãos de controle haviam-se recusado a efetuar estudos de longa duração de impacto sobre a saúde, limitando-se a fazer testes de 90 dias com ratos, ou seja, o equivalente a testes em seres humanos durante alguns anos, e não a vida inteira. E o sistema era tão bem estabelecido que uma firma como a Monsanto, que produz a maioria dos OGM encontrados no mercado, proibia que os compradores de sementes as utilizassem para fazer pesquisas: a empresa se reservava o monopólio dos estudos. Podemos ver bem a neutralidade!

Essa lei do silêncio acaba de explodir. Por iniciativa do Criigen, o Comitê de Pesquisa e Informação Independentes sobre Genética, um instituto independente de avaliação criado originalmente pela advogada Corinne Lepage, ex-ministra francesa do Meio Ambiente e deputada europeia muito envolvida nesses assuntos, uma pesquisa independente foi realizada durante dois anos, financiada por verbas privadas, pois os poderes públicos se recusaram durante anos a fazer essa pesquisa com verbas públicas. Ela examinou uma variedade de milho geneticamente modificada e comercializada pela Monsanto, o milho NK603, autorizado no mercado. Ela teve de ser realizada na clandestinidade, com todas as garantias científicas necessárias. Seus resultados acabam de ser publicados pela renomada revista americana Food and Chemical Toxicology e tiveram o efeito de uma bomba, evidenciando uma séria consequência tanto do milho OGM como do pesticida Roundup, ao qual esse milho é tolerante e que ele veicula nos ratos. Esse efeito se manifesta, como por acaso, apenas a partir dos 90 dias a que são limitados os estudos exigidos antes da colocação no mercado. O primeiro-ministro francês reagiu muito rapidamente junto às autoridades europeias e pretende não mais respeitar as decisões europeias se os procedimentos de avaliação não forem revisados. O debate já causa furor em Bruxelas.

O público chinês pode ser deixado de lado, ignorante desses riscos? Não é por excelência um tema social, para o qual nosso Fórum deve criar um espaço de diálogo tranquilo mas exigente? E os procedimentos de autorização na China? Constatamos os mesmos conflitos de interesse que na Europa? Os cidadãos chineses não têm nada a dizer? Podemos continuar pensando que tudo o que se proclama científico o é realmente? E se é verdade que brincamos com nossa saúde, fingindo nos alimentar de maneira “moderna”, quem finalmente será responsável? São muitos temas que agora é necessário colocar em praça pública.*

*Presidente da fundação China Europa Forum

Por Pierre Calame*

No cruzamento da reflexão sobre a ética, a ciência, a tecnologia e a governança, o Fórum China Europa se interessou em 2007 e 2010 pelo domínio social das ciências e tecnologias, pelo papel dos consumidores, a bioética e, mais especificamente, pelos cultivos agroalimentares duradouros. Através de diferentes oficinas, notamos uma atitude mais crítica dos europeus que dos chineses em relação à ciência, e certos europeus não hesitaram em questionar o caráter automático dos benefícios da ciência para a sociedade, insistindo na responsabilidade dos pesquisadores sobre o impacto de seus trabalhos e do uso que se faz deles. Alguns falaram até na necessidade de um novo contrato entre a pesquisa científica e a sociedade, considerando que não poderíamos confiar ao Estado as opções tecnológicas. Do lado chinês, expressou-se de modo geral uma maior confiança na ciência e na tecnologia, que pareciam fatores suscetíveis de trazer prosperidade ao país. Em outra oficina, dedicada especificamente aos cultivos agroalimentares duradouros, os europeus manifestaram suas dúvidas sobre a introdução de culturas de plantas geneticamente modificadas, mas a oficina especificamente dedicada aos organismos geneticamente modificados (OGMs) não pôde ser realizada em 2010.

Desde então, os escândalos repetidos que afetam a qualidade da alimentação na China e a eficácia dos controles dessa segurança pelas autoridades públicas tornaram a opinião pública chinesa muito mais sensível ao que as famílias colocam em seus pratos e ao impacto da alimentação sobre a saúde, a ponto de ver ressurgir uma agricultura de proximidade, em que as famílias podem controlar o que comem. Em contraste com a permissividade das autoridades chinesas, as europeias, com seus mecanismos de avaliação científica e independente, previamente à colocação no mercado de novos pesticidas ou novos OGM, pareciam isentas de qualquer censura.

Na realidade, na Europa também se manifestaram dúvidas, cada vez mais numerosas, em relação à neutralidade e à objetividade proclamadas pelas instâncias de avaliação, e o Parlamento Europeu tratou do problema, mostrando os diversos conflitos de interesses nessas instâncias de avaliação: peritos e órgãos de direção aparecem muito ligados ao lobby das firmas de sementes e químicas e do agronegócio. Ainda mais que os exemplos históricos do amianto e do tabaco demonstraram nesses últimos anos que as firmas produtoras negaram os efeitos perigosos para a saúde, não hesitando em financiar cientistas para semear dúvidas sobre todos os estudos científicos que demonstravam, há vários anos, a periculosidade desses produtos. Tudo isto pôs em questão certamente a ideia de um especialista neutro, que se pronuncia com base em uma certeza científica que não sofre qualquer controvérsia.

Um novo passo muito importante acaba de ser dado nesse debate: os testes apresentados até hoje como “científicos” para avaliar o risco de um novo produto são realmente científicos? Não foram concebidos para evitar salientar o perigo potencial dos novos produtos colocados no mercado, sendo sua duração definida não em função do que seria preciso fazer para avaliar esse risco, mas em função dos interesses das firmas de limitar ao máximo o tempo dos estudos para garantir a rentabilidade de sua pesquisa? Acusação gravíssima! Ainda mais grave porque a lei europeia responsabiliza os produtores pelo impacto de seus produtos, exceto… se os conhecimentos científicos não forem suficientes para avaliar esse impacto. Daí é apenas um passo para se pensar que houve cumplicidade entre as grandes empresas e as autoridades de avaliação, com o fim de não ter condições de saber, de maneira que as empresas que colocam no mercado, os especialistas consultados e os responsáveis pelas instâncias de avaliação sejam todos isentados de responsabilidade, em nome de sua ignorância.

E quando descobrimos que os testes supostamente científicos se baseavam em hipóteses que não têm nada de científico, começamos a duvidar cada vez mais da seriedade da perícia. Assim, adotávamos até hoje a hipótese de que um efeito só estava demonstrado quando ele era mais forte conforme a força da dose. Mas todos os estudos convergem para mostrar que, para todos os produtos que têm um impacto no sistema endócrino, uma exposição prolongada a uma dose muito fraca pode ter um efeito mais grave que uma exposição mais curta a uma dose forte. Do mesmo modo, segundo testes oficiais, para que um efeito fosse reconhecido era preciso que ele fosse igual para homens e mulheres: estranha concepção da ciência, na verdade.

Até hoje, empresas e órgãos de controle haviam-se recusado a efetuar estudos de longa duração de impacto sobre a saúde, limitando-se a fazer testes de 90 dias com ratos, ou seja, o equivalente a testes em seres humanos durante alguns anos, e não a vida inteira. E o sistema era tão bem estabelecido que uma firma como a Monsanto, que produz a maioria dos OGM encontrados no mercado, proibia que os compradores de sementes as utilizassem para fazer pesquisas: a empresa se reservava o monopólio dos estudos. Podemos ver bem a neutralidade!

Essa lei do silêncio acaba de explodir. Por iniciativa do Criigen, o Comitê de Pesquisa e Informação Independentes sobre Genética, um instituto independente de avaliação criado originalmente pela advogada Corinne Lepage, ex-ministra francesa do Meio Ambiente e deputada europeia muito envolvida nesses assuntos, uma pesquisa independente foi realizada durante dois anos, financiada por verbas privadas, pois os poderes públicos se recusaram durante anos a fazer essa pesquisa com verbas públicas. Ela examinou uma variedade de milho geneticamente modificada e comercializada pela Monsanto, o milho NK603, autorizado no mercado. Ela teve de ser realizada na clandestinidade, com todas as garantias científicas necessárias. Seus resultados acabam de ser publicados pela renomada revista americana Food and Chemical Toxicology e tiveram o efeito de uma bomba, evidenciando uma séria consequência tanto do milho OGM como do pesticida Roundup, ao qual esse milho é tolerante e que ele veicula nos ratos. Esse efeito se manifesta, como por acaso, apenas a partir dos 90 dias a que são limitados os estudos exigidos antes da colocação no mercado. O primeiro-ministro francês reagiu muito rapidamente junto às autoridades europeias e pretende não mais respeitar as decisões europeias se os procedimentos de avaliação não forem revisados. O debate já causa furor em Bruxelas.

O público chinês pode ser deixado de lado, ignorante desses riscos? Não é por excelência um tema social, para o qual nosso Fórum deve criar um espaço de diálogo tranquilo mas exigente? E os procedimentos de autorização na China? Constatamos os mesmos conflitos de interesse que na Europa? Os cidadãos chineses não têm nada a dizer? Podemos continuar pensando que tudo o que se proclama científico o é realmente? E se é verdade que brincamos com nossa saúde, fingindo nos alimentar de maneira “moderna”, quem finalmente será responsável? São muitos temas que agora é necessário colocar em praça pública.*

*Presidente da fundação China Europa Forum

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