Justiça

A quem interessa o erro judicial?

O Innocence Project Brasil ajuda a corrigir erros judiciários e a chama atenção para a necessidade de reformas no sistema penal

Todos os dias, nos Estados Unidos, perto de 1.700 pessoas são libertadas da prisão.
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Há cerca de três anos, Silvio José da Silva Marques foi condenado a quase 17 anos de prisão por uma tentativa de latrocínio, na cidade do Rio de Janeiro. 

A prova: o reconhecimento fotográfico feito pela vítima, mais de um mês depois do crime, quando acordou do coma. 

No momento do crime, contudo, estava a mais de 30 quilômetros do local dos fatos. Outras três testemunhas também não identificaram Silvio como autor do crime – mas ainda sim, ele foi condenado. A polícia tinha pressa em resolver o caso, e o reconhecimento facial induzido por agentes, de forma ilegal, bastou para o manter por quase seis anos atrás das grades. 

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça anulou a condenação de Silvio. A revisão do caso contou com a ajuda de um grupo de profissionais voluntários do Innocence Project Brasil, uma organização que integra uma rede mundial dedicada a reverter erros judiciários e melhorar o sistema prisional.

Fundado em 1992 por dois advogados norte-americanos, o Innocence Project usa a tecnologia do DNA para reverter condenações injustas. Desde então, a rede se expandiu globalmente e já conseguiu reverter a condenação de 624 inocentes.

Desde 2017, o braço brasileiro trabalha para reverter condenações injustas e chamar a atenção para a falibilidade do sistema judiciário. Até agora, o grupo já inocentou 17 pessoas. No entanto, a principal barreira é financeira, com a organização dependendo quase exclusivamente de doações.

As causas dos erros

Por mais que seja possível identificar, em casos específicos, as origens dos erros judiciais, em um contexto amplo, o equívoco nunca é causado apenas por um elemento. Um processo judicial depende da atuação de diversos atores, que acompanham o caso, não só na fase de investigação, onde os erros estão presentes, como nas fases judiciais.

“A polícia não investiga bem, o promotor de Justiça se satisfaz com uma investigação superficial, e o juiz acata a denúncia. Isso leva a condenações baseadas em procedimentos inadequados,” explica Flávia Rahal, diretora do Innocence Project Brasil. “A própria defesa muitas vezes tem uma parcela de responsabilidade, com defesas mal feitas ou inexistentes.”

Falhas também decorrem da incapacidade do Estado em produzir provas adequadas. “Temos um sistema de investigação que acaba sendo burocratizado e que exige pouco do ponto de vista probatório,” observa Flávia.

Os dados permitem dizer, contudo, que um dos maiores vetores de erros judiciais está no reconhecimento dos supostos criminosos por parte da vítima. Segundo o Innocence Project de Nova York, em 70% dos 375 casos de prisões injustas revertidas, a causa principal foi o reconhecimento errado.

Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, divulgado em 2022, revelou que, em 242 condenações baseadas em reconhecimento fotográfico entre janeiro e junho de 2012, 3% dos casos tiveram erros de reconhecimento. Em 80% dos casos, inocentes passaram mais de um ano presos.

Em crimes sexuais, perdura ainda uma aceitação simplista de depoimentos de vítimas, sem busca por outras provas que validem esses depoimentos. “Em casos em que a palavra da vítima é fundamental, muitas vezes o depoimento é tido como suficiente e não se buscam outras provas”, completa a advogada. 

A disparidade racial

A maioria dos erros afeta desproporcionalmente pessoas pretas e pardas. Segundo um levantamento da Comissão Criminal do Colégio Nacional dos Defensores Públicos-Gerais, o Condege, entre 2012 e 2020, 81% das 90 prisões injustas motivadas por reconhecimento fotográfico envolviam pessoas pretas ou pardas.

Para Flávia Rahal, o racismo estrutural também está diretamente relacionado com os erros judiciais. “A gente tem visto muito claramente algumas dinâmicas, tanto de investigação quanto procedimentais, que acabam reforçando isso”. 

Incidência de erros no sistema judiciário

Infelizmente, não existem dados precisos sobre quantas pessoas foram presas injustamente no Brasil, dificultando uma análise mais aprofundada. “O primeiro passo para melhorar o sistema penal é reconhecer que ele é falho porque é feito por pessoas,” diz Flávia Rahal. “É preciso olhar para como erramos para impedir que isso volte a acontecer.”

O Innocence Project se dedica exclusivamente à defesa de processos em que o acusado seja inocente, e essa escolha tem um propósito claro. “O projeto olha para o inocente porque, no caso de um inocente condenado e preso, você faz com que as pessoas olhem para o sistema. Mesmo aquelas que têm uma percepção mais punitivista da vida. Elas param para pensar sobre o que aconteceu para que uma pessoa inocente seja presa e condenada,” explica Flávia Rahal.

Além das absolvições, o projeto conseguiu despertar o interesse das pessoas pelo sistema de Justiça e carcerário. “Acho que o objetivo do projeto é fazer com que as pessoas olhem para o sistema de justiça e reflitam, principalmente aqueles que integram esse sistema, sobre a sua parcela de responsabilidade pela forma como ele anda hoje,” afirma a advogada.

Em Santa Catarina, os advogados do grupo conseguiram reverter o entendimento jurisprudencial sobre a forma como o reconhecimento de suspeitos deve ser realizado pelas autoridades policiais.

A advocacia defensiva

O sistema judiciário e os tribunais de julgamento são temas recorrentes em inúmeras séries e filmes norte-americanos. Não faltam temporadas com defensores pirotécnicos que apresentam uma prova inquestionável – e muitas vezes improvável – nos minutos finais da história, garantindo a inocência de seus clientes.

A chamada advocacia defensiva, comum nos Estados Unidos, é ainda recente no Brasil. Em 2018, a Ordem dos Advogados do Brasil regulamentou a atividade, permitindo aos defensores a produção, ainda que tímida, de provas.

No Innocence Project Brasil, são os advogados do grupo os responsável pela produção da prova que poderá provar a inocência de seus assistidos. “Há caminhos probatórios que não foram perseguidos na investigação normalmente é nisso que a gente se concentra”, conta Flávia Rahal.

Por conta da novidade, a prática ainda encontra certas resistências. “Pessoas que recebem um telefonema nosso sobre um caso que já foi encerrado muitas vezes estranham não estar falando com um promotor, um delegado, um juiz”, completa.

Conhece algum caso semelhante? 

O Innocence Project Brasil recebe relatos de casos pelo seu site. Para serem aceitos, os casos devem ter condenação transitada em julgado e apresentar uma prova nova que comprove a inocência do acusado.

“Quando a gente fala de uma revisão criminal, que vai fundamentar a existência daquela ação de rever uma condenação a partir da inocência, você precisa necessariamente apresentar uma prova nova”, explica a advogada. 

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