Decisão do STF é importante, mas não deve aliviar o encarceramento de usuários como traficantes

O advogado Cristiano Maronna, diretor do JUSTA, critica o fato de o testemunho policial continuar sendo decisivo para a classificação como tráfico de drogas

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Após idas e vindas, uma decisão do Supremo Tribunal Federal descriminalizou o porte da maconha para uso pessoal. Com isso, portar maconha deixa de ser um crime, mas ainda é considerado um ato ilícito, podendo gerar sanções administrativas a quem for pego com a substância.

A decisão tem caráter de repercussão geral, ou seja, servirá de parâmetro para todos os juízes e todos os tribunais brasileiros em casos semelhantes.

Na quarta-feira 26, a Corte avançou no julgamento e definiu o limite máximo de 40 gramas ou seis plantas fêmeas para que um usuário não seja considerado traficante. A quantidade, no entanto, não será o único fator considerado em cada caso concreto.

A gramatura representa apenas uma “presunção”. Ou seja: uma pessoa pode ser flagrada com gramatura inferior ao teto fixado pelo STF e, ainda assim, ser enquadrada como traficante, a depender de outras circunstâncias. Da mesma forma, pode ser pega com um volume superior ao limite e ser considerada apenas usuária.

Cristiano Maronna, diretor do JUSTA, organização que atua no campo da economia política da justiça, reconhece como positiva a descriminalização da maconha, mas pondera que a decisão do Supremo é tímida quando comparada à de outras cortes constitucionais e, mais do que isso, não deve ser capaz de promover mudanças no caso de pessoas flagradas com a substância e que são enquadradas como traficantes.

“O testemunho policial e as provas a ele associadas continuam sendo decisivos para a classificação do tráfico. É uma decisão, eu diria, inspirada no filme Il Gato Pardo, do Luchino Visconti, ‘algo precisa mudar para que tudo permaneça como está'”.


Confira a seguir:

CartaCapital: Como você avalia a decisão do STF pela descriminalização do porte da maconha?

Cristiano Maronna: Claro que a descriminalização é importante, é um primeiro passo. Mas, é importante dizer, em primeiro lugar, que essa decisão foi muito recuada quando comparada a decisões tomadas por outras supremas cortes, como na Argentina, Colômbia, México e África do Sul. A decisão restringe apenas à maconha, não há outras drogas tornadas legais, e isso já diminui diminui bastante o seu impacto, porque quem mais necessitaria dos benefícios que a descriminalização pode trazer são as pessoas que vivem em situação de rua e são usuárias de múltiplas drogas.

Outro ponto é que, ao descriminalizar mas manter a maconha para uso pessoal no campo da ilegalidade, da ilicitude – não mais como uma norma penal, mas administrativa – o STF também criou uma série de incertezas, porque não se sabe exatamente como vai funcionar. Não é mais crime, porém, o critério de diferenciação entre uso e tráfico continua aberto demais. O testemunho policial e as provas a ele associadas continuam sendo decisivos para a classificação do tráfico. O racismo estrutural, denunciado por muitos ministros, em especial o Alexandre de Moraes, vai continuar existindo sem nenhuma dificuldade nesse modelo aprovado. É uma decisão, eu diria, inspirada no filme Il Gato Pardo, do Luchino Visconti, ‘algo precisa mudar para que tudo permaneça como está’.

CC: A Corte estabeleceu o limite de até 40g para que um usuário seja diferenciado de traficante. Isso não contribui para a melhora do cenário?

CM: A fixação de critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico de drogas não é inédita, mesmo sendo feita pela via judicial. Na Espanha e na Alemanha, por exemplo, o judiciário fixou diretrizes objetivas baseada em quantidade para diferenciar uso e tráfico de droga. Agora, aqui, o Supremo só tomou essa decisão porque identificou a necessidade de fazer isso em vista do modo pela qual a lei é aplicada, na prática, por juízes de primeiro e segundo grau, especialmente. E como a lei é aplicada? Toda pessoa flagrada com drogas é traficante exceto se ela provar que é um mero usuário. Quando, pela regra constitucional, toda pessoa flagrada com drogas tem que ser presumida usuária e acusada de tráfico quando houver provas nesse sentido.

Não é mais crime, mas o critério de diferenciação entre uso e tráfico continua aberto demais

O Supremo faz um diagnóstico correto quando reconhece que muitos usuários são tratados como traficantes, mas não encaminha adequadamente as soluções. Apesar de estabelecer uma presunção relativa de que aquele que porta até 40 gramas de maconha é usuário, abre-se a porta para que mesmo com quantidades inferiores pessoas sejam acusadas de tráfico, se houver o testemunho policial e as provas a ele ancoradas nesse sentido.

O tema fundamental que não foi tratado e deveria ser é justamente o patamar probatório do tráfico de drogas. Qual é o coeficiente probatório necessário para que alguém seja acusado e condenado por tráfico? Quais provas podem ser consideradas suficientes para provar o tráfico de drogas? Via de regra, pessoas condenadas por tráfico têm como únicas testemunhas os policiais que participaram da ocorrência, mas isso é insuficiente. Um processo penal de base epistemológica democrática, garantista, exige uma corroboração externa, uma investigação adequada que traga, de fato, provas idôneas, que comprovem a existência do tráfico.

Por isso falo de um avanço tímido, porque durante a regra de transição que o próprio STF estabeleceu vai continuar vigorando o procedimento criminal.

CC: O que muda, na prática, se uma pessoa for flagrada com portando maconha?

CM: O policial vai fazer a abordagem e conduzir a pessoa à delegacia, onde o delegado de polícia vai lavrar um termo circunstanciado ou auto de prisão em flagrante. Os autos serão encaminhados ao Fórum Criminal, no caso de uso pessoal, a um juizado especial e, no caso de tráfico, aos órgãos criminais. Ou seja, na prática, vai mudar muito pouco, com riscos de que haja uma piora na condução dos casos.

CC: Por quê?

CM: Pelo artigo 28 da norma penal, a competência para legislar sobre o direito penal é privativa da União, portanto, só o Congresso pode discutir, aprovar e deliberar sobre o tema. Agora, com a mudança do artigo para uma norma do direito administrativo, surge uma nova competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, além dos municípios em matérias relacionadas especificamente às cidades. Isso abre uma porta para que visões de mundo autoritárias e propostas de políticas públicas violadoras de direitos, sem eficácia, sejam implementadas.

São os casos de leis municipais que estabelecem multas pecuniárias altíssimas e, muitas vezes, determinam o tratamento forçado, a internação, para pessoas flagradas usando drogas em locais públicos. E a gente sabe que o alvo dessas dessas leis são as pessoas que vivem em situação de rua. Existe aí um risco de criação do arcabouço normativo de leis municipais e estaduais que viabilizem uma abordagem do cuidado, do tratamento, da política de drogas na área da saúde numa guinada conservadora, no rumo da massificação da internação forçada, o que é absolutamente absurdo. E que também vai estimular a criatividade da extrema-direita, que hoje tem como bandeira política a manutenção da guerra às drogas. Se tem como premissa o endurecimento da lei penal como resposta aos desafios em segurança pública e não se discute, por exemplo, o fato de que a investigação criminal no Brasil é de muito má qualidade.

CC: Quais elementos definem a má qualidade da investigação criminal brasileira?

CM: Uma pesquisa do Instituto Sou da Paz, por exemplo, diz que, em caso de mortes violentas apenas uma em cada três são esclarecidas. O Justa tem uma pesquisa que mostra que, do dinheiro previsto no orçamento dos estados para a segurança pública, 66% vai para a Polícia Militar. Isso ocorre em São Paulo, especialmente. Esse direcionamento orçamentário que agiganta a Polícia Militar e subfinancia a Polícia Civil e a Técnico Científica é a causa que tem como consequência a investigação criminal de baixa qualidade, que não consegue esclarecer os crimes. Isso explica o fato de que 90% dos processos por tráfico começam na abordagem da Polícia Militar, na via pública, sem trabalho de investigação prévia.

 


CC: Um estudo do Ipea mostrou que mais de 40 mil pessoas não estariam presas se o limite do porte de maconha fosse de 25g. Com o teto em 40 gramas, esse número certamente é muito maior. A decisão do STF tem um efeito retroativo para esses casos?

CM: Sim, há um efeito retroativo. No entanto, a única disposição que o STF fez em relação a esse tema é delegar ao Conselho Nacional de Justiça a atribuição de criar, em parceria com as defensorias públicas, mutirões carcerários para analisar caso a caso e verificar quais deles podem se beneficiar da tese da presunção relativa. Também aqui, a gente não tem exatamente uma noção de qual impacto isso pode ter no sistema prisional, embora sim, estejamos falando de dezenas de milhares de detentos. Agora, como se considera como circunstâncias de tráfico apenas o testemunho policial e as provas a ele ancoradas há pouca esperança de que haja uma mudança concreta.

Ao menos entendo que a decisão do STF é um chamado ao debate inclusive ao Congresso. Por outro lado, sabemos que o Congresso hoje está prestes a aprovar PEC 45 que diz exatamente o oposto que o Supremo está dizendo. [a PEC 45, conhecida como PEC das Drogas, propõe alterar o artigo 5º da Constituição para prever como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independente da quantidade]. Ao contrário do que muitos têm dito, que o STF estaria passando por cima do legislador, vemos claramente o movimento oposto, do Legislativo tentando atropelar o Judiciário, exatamente como no caso do Marco Temporal.

CC: Então, é de competência do Supremo decidir sobre o tema da descriminalização da maconha?

CM: É competência do STF angular o controle de constitucionalidade de normas jurídicas. Isso é uma função típica de Corte constitucional, tanto é que outras cortes constitucionais analisaram a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal e chegaram à conclusão de que esse crime é inconstitucional, isso aconteceu na Argentina, na Colômbia, no México, e na África do Sul. Então, o Supremo não está inovando ao avaliar a constitucionalidade desse tema. Dizer que não é uma competência do Supremo é uma fake news. Em uma democracia como a brasileira, o Congresso produz as leis, mas quem  dá a última palavra sobre controle de constitucionalidade é o Supremo.

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