Justiça

Direito e intolerância religiosa: o Tambor de Mina e os encantamentos

Encantar-se em quilombos é um direito dos povos de matriz africana contra intolerância religiosa que grassa no país

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Venho de família que era da “pajelança”, religião afro-indígena, muito popular no Maranhão. Diversas razões interromperam essa ligação, diante da conversão da maioria ao pentecostalismo, tão presente nas camadas populares, as quais, às vezes, não resistem ao proselitismo intolerante de religiões hegemônicas.

Comigo, restou um crer nas múltiplas possibilidades dos mistérios: encantados, orixás, entidades, santos ou apenas a fagulha que deve estar em mim, átomo presente em todo o Universo, ao que muitos consideram “Deus”, Olodumare, Tupã, e que, quiçá, nada mais seja do que a inteligência em toda sua potência e, ao mesmo tempo, a simplicidade em toda sua benevolência: um/a deus/a menos universal e mais particular, falho/a e humano/a, que compreenda os particularismos religiosos de cada um/a, inclusive daqueles em quem nada creem e seja capaz de brincar e dançar com(o) as/os demais deusas/es.

E por que as religiões afro-indígenas brasileiras são intoleradas pelos que professam o racismo religioso? Há várias respostas, mas tratarei da perspectiva que vejo no Tambor de Mina, religião surgida no Maranhão, fundada por Ná Agotimé, uma rainha africana, escravizada, que teria fundado a Casas das Minas[i]. Para Mundicarmo Ferretti, no Tambor de Mina são cultuados voduns e orixás, gentis e caboclos. Contudo, há uma expressão que chama bastante atenção na Mina: a encantaria.

O que mais incomoda os fundamentalistas, ferindo de morte o princípio constitucional da liberdade religiosa (art. 5º, VI), deve ser o encantamento que as religiões afro-indígenas transmitem. Não se trata só de religação, mas “encantar-se” com a ancestralidade e consequentemente com suas próprias vidas terrenas, passadas e presentes.

Conheci o Tambor de Mina através de Pai Itaparandi, da Casa Pedra de Encantaria (Ilê Axé Otá Olé). Percebi que não se trata só de religião, porém de filosofia, sociabilidade, comunidade aquilombada, e cultura que transpira a ancestralidade mediada pelos fluxos da diáspora. Max Weber dizia que o mundo estava em desencanto, enquanto Nietzsche só acreditaria em um Deus que pudesse dançar.

Na Mina, os voduns e encantados/as descem no terreiro de chão batido para juntar-se aos seus. Humanos e divindades reverenciam a vida e a sua capacidade transformadora através da dança que promove encantamento. Esse direito tão singelo de “dançar” e celebrar o poder da vida, de encantar-se com as divindades é intolerado pelos fundamentalistas, os quais não suportam a inquestionabilidade de suas verdades terrenas e fragilidades teológicas.

 

Nesse sentido, uma religião que lida com a encantaria, celebra os sons dos tambores, acolhe os coloridos do bumba-meu-boi e regozija a corporalidade do tambor-de-crioula, torna-se ameaça a dogmas sedimentados e verdades únicas e enclausuradoras dos homens[ii]. Jesus, demasiadamente humano, disse que se conhecêssemos a verdade esta nos libertaria. Já Padre Antônio Vieira dizia “Resolvi-lhe a vous dizer uma só verdade: mas que verdade será esta? Não gastemos tempo: a verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade”.

Vieira devia saber que a verdade é facilmente manipulável pelos homens, tanto que formulou toda uma justificação teológica, envolvendo até a Imaculada Santa Maria, para justificar a escravidão. Quem sabe a verdade que liberta seja descobrir que no campo sagrado há mais incertezas do que verdades: apenas um princípio leva à verdade que pode conectar todas/es/os, o amor um/a ao outro/a, assim como Ele nos amou e tolerou.

Se há amor, há encantamento e ambos dissipam as intolerâncias alicerçadas nos pactos de opressivos de masculinidade, branquitude, classicismo etc. Desconfio que o maior medo dos intolerantes é, em mundo desencantado pelo consumo e acumulação, defrontar-se com religiões que vivenciam o encantamento dos indivíduos consigo mesmos, a ancestralidade, a natureza, a comunidade etc., pois, após o catolicismo ter avalizado a colonização, como explicou Weber, a ética protestante foi fundamental para a ascensão do capitalismo.

Dessa forma, encantar-se constitui direito daqueles que acreditam que podem se conectar com o transcendental e divindades aqui mesmo. Ao Estado, por sua vez, é essencial prevenir e coibir quaisquer intolerâncias, sabidamente racializadas, pois o próprio Jesus, em seu encantamento com todes e afirmando o princípio jurídico da laicidade, vigente desde o Decreto 119-A/1890 e Constituição de 1891, já dizia que os assuntos divinos não devem se confundir com os estatais.

Pelo dever de menos intolerância e direito de mais encantamento!


[i] VERGER, Pierre. Uma rainha africana mãe de santo em São Luís. Revista USP, São Paulo, p. 152-158, jun./ago. 1990.

[ii] Uso “homens” para evidenciar o caráter patriarcal e masculino da questão.

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