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Desejo sufocado

Cinco anos depois da tentativa frustrada de independência, a Catalunha divide-se sobre o tema

Passo em falso. A campanha separatista de 2017 foi reprimida com dureza pelo governo central. Puigdemont, governador à época, refugiou-se na Bélgica para evitar a prisão - Imagem: LLuis Gene/AFP e Ruben Moreno García/Governo da Catalunha
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Apesar de ser um dos poucos dias nacionais que comemoram uma derrota calamitosa – neste caso, a queda de Barcelona durante a Guerra da Sucessão Espanhola em 1714 –, a Diada da Catalunha raramente é um assunto sombrio. A cada 11 de setembro, nos últimos dez anos, centenas de milhares de catalães pró-independência compareceram, muitas vezes em grupos familiares, com carrinhos de bebê e cachorros, para mostrar sua força e fazer um apelo pacífico pela separação do resto da Espanha.

A Diada deste ano foi, porém, diferente. Cinco anos depois que a corrida precipitada do governo regional em direção à independência resultou em um referendo ilegal, uma declaração unilateral de independência e a pior crise constitucional da Espanha em 40 anos, o movimento secessionista está num lugar diferente e mais ousado. A multidão de 1,5 milhão que tomou as ruas de Barcelona uma década atrás deu lugar a cerca de 150 mil, segundo a polícia local, embora os organizadores estimassem o comparecimento em 700 mil. As camisetas da Diada, geralmente nas cores vermelha e amarela da bandeira catalã, eram de um preto fúnebre, e um cartaz esplendoroso articulava os sentimentos de muitos catalães pró-independência em relação aos líderes regionais que não cumpriram suas promessas: Botifler, no te votaré, dizia: “Traidor, você não terá meu voto”.

Grande parte da raiva dos independentistas radicais volta-se para o presidente regional catalão, Pere Aragonès, por sua disposição de encontrar uma solução negociada para o impasse político. Aragonès esteve notavelmente ausente da marcha da Diada organizada pela Assembleia Nacional da Catalunha, poderoso e influente grupo de base que tem pressionado incansavelmente pela independência nos últimos anos. Montse Planas, que veio para a Diada da vila de Caldes de Montbui, a uma hora de carro ao norte da capital catalã, disse que se sentiu decepcionada com os políticos da Catalunha e de Madri. “Estamos seguindo com a luta”, disse. “Os políticos não estão, mas nós estamos. Não vale a pena negociar com Madri, temos de lutar contra isso nós mesmos, e o faremos.”

Atualmente, 52% da população é contra a separação da Espanha

Não houve queixas desse tipo em 1º de outubro de 2017, quando o então presidente da Catalunha, Carles Puigdemont, desafiou o governo e os tribunais da Espanha e organizou o referendo unilateral. O único inimigo naquela época era o Estado espanhol, encarnado pelo governo conservador do ex-primeiro-ministro Mariano Rajoy, que insistia que o referendo nunca aconteceria, e pelos milhares de policiais espanhóis, cujas tentativas violentas de impedir a votação acabaram nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo no dia seguinte. Para os independentistas de longa data e, na verdade, para muitos dos menos convencidos, a batida policial nas seções de votação, o espancamento de eleitores e o disparo de balas de borracha foram uma prova inequívoca da necessidade de se separar. Daí a alegria fugaz 26 dias depois, quando os parlamentares separatistas catalães votaram pela criação de uma república independente – fugaz porque levou o governo de Rajoy a demitir Puigdemont e seu gabinete, assumir o controle direto da ­Catalunha e ordenar uma nova eleição regional.

Para evitar a prisão, Puigdemont fugiu para a Bélgica, onde permanece até hoje, enquanto outras figuras pró-independência ficaram para enfrentar as consequências, que incluíram a prisão de nove delas. Embora Puigdemont e seus seguidores tenham se mostrado incapazes de entregar a nova república, conseguiram atrair a atenção do mundo e colocar o assunto no topo da agenda política da Espanha. Onde eles falharam de forma abrangente e consistente foi, no entanto, em ouvir a maioria dos catalães que se opõem à independência.

Quando os deputados catalães pró-independência votaram para proclamar a separação em 27 de outubro de 2017, um legislador local de centro-direita virou-se para Puigdemont e perguntou: “Como você pode imaginar que pode impor uma independência assim, sem uma maioria a favor… e com este simulacro de referendo?” Cinco anos depois, a questão da validade ainda paira no ar do outono. No auge da crise em outubro de 2017, uma pesquisa do Centro de Estudos de Opinião do governo catalão descobriu que 48,7% dos cidadãos apoiavam a independência, enquanto 43,6% não. De acordo com uma pesquisa realizada neste verão pelo mesmo centro, 52% dos catalães agora são contra a independência, enquanto 41% são a favor. Outros apontam que quase um quinto da população da região é composto por imigrantes que não podem votar nas eleições regionais ou gerais, enquanto em Barcelona os nascidos no exterior representam quase 25% da população.

Na corda bamba. Os separatistas desconfiam das intenções de Aragonès – Imagem: Alberto Estévez/AFP

Confrontos de personalidades e divisões cada vez maiores sobre o melhor caminho a seguir dividiram o governo catalão e os três partidos pró-independência da região: o partido Esquerda Republicana Catalã (ERC), de Aragonès, o partido de centro-direita Juntos pela Catalunha, de Puigdemont (Junts), e a Candidatura da Unidade Popular (CUP), de extrema-esquerda. Os três compartilham o objetivo comum da independência catalã, mas um pouco mais. Nas eleições regionais do ano passado, os partidos pró-independência conquistaram a maioria geral do voto popular pela primeira vez (51%), mas o partido que obteve a maior fatia da votação foi o braço catalão do sindicalista Partido Socialista Catalão, liderado pelo ex-ministro da Saúde espanhol Salvador Illa. Aragonès acabou por se tornar o presidente, mas apenas com o apoio relutante de seus parceiros de coalizão do Junts.

No grandioso ambiente medieval do Palau de Generalitat, sede do governo catalão, Aragonès defende a decisão do seu partido de dividir a mesa de negociações com o governo socialista do primeiro-ministro Pedro Sánchez, apesar das repetidas críticas dos outros dois partidos pró-independência. Sentado numa sala com lambris de madeira, ele escolhe suas palavras com cuidado. Ao contrário de ­Puigdemont e seu sucessor, Quim Torra, o presidente em exercício optou por suavizar a retórica. Mas sua abordagem mais pragmática foi prejudicada por revelações, relatadas pela primeira vez pelo Guardian e ­pelo El ­País, de que os líderes da independência catalã foram visados pelo ­spyware ­Pegasus do NSO Group. “Há uma parte do movimento de independência que não concorda com esse processo de negociação, mas acredito que seja necessário”, disse. “Quando há conflito em uma democracia, você tem de negociar. Não há alternativa. Os catalães que se opõem a isso verão no futuro que esta é a melhor maneira de chegar a uma solução democrática.”

Os defensores da independência não confiam nas negociações com Madri

Aragonès, reconhece que seus apoiadores estão desiludidos e, embora se oponha à sugestão do ex-presidente catalão Artur Mas de que o movimento foi longe demais, rápido demais, ele aconselha paciência. “Temos de continuar a construir uma maioria diante de um Estado que não reconhece esse direito à autodeterminação, para atingir uma maioria acima de 51%.” Embora tenha mais em comum com o PSC de esquerda em questões sociais e econômicas, o ERC tem consistentemente formado coalizões com partidos de centro-direita. “É impossível chegar a um acordo com o Partido Socialista Catalão, porque eles não aceitam o princípio do direito de decidir”, acrescenta. “Atual­mente, o Partido Socialista ­Catalão é o principal representante da elite financeira da Catalunha, que não quer que tenhamos soberania.” Para o presidente regional, a política social continua indissociavelmente ligada à soberania. “Só podemos levar a cabo políticas sociais ambiciosas, como a distribuição mais equitativa da riqueza, igualdade de oportunidades e prestação de melhores serviços públicos, se tivermos capacidade legislativa e econômica para decidir.”

Do outro lado da cidade, num escritório perto da cada vez maior e ainda em construção Basílica da Sagrada ­Família, está Jordi Turull, independentista profundamente comprometido, com ­senso de humor seco. O secretário-geral do Junts, legenda rotulada de “o partido de direita da independência da Catalunha” por seus parceiros de coalizão, tem poucas palavras calorosas para Aragonès ou suas políticas. Turull considera que o ERC renegou o acordo de que o movimento pró-independência como um todo, incluindo grupos pró-independência não eleitos como o ANC e o Òmnium ­Cultural, participaria das conversações em Madri, e não apenas os principais partidos políticos. “O Estado espanhol, seja um governo de direita ou de esquerda, tem de preparar o roteiro para uma declaração de independência.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Desejo sufocado “

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