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Duro aprendizado

Não bastassem os problemas acumulados, o neófito Pedro Castillo pena para acertar o rumo do governo

Castillo, em rara entrevista: “Não fui preparado para chegar à Presidência” – Imagem: Aldair Mejia/Presidência do Perú
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Desde sua posse, em 28 de julho do ano passado, ­Pedro Castillo, presidente do Peru, parece enfrentar um infindável e caótico terceiro turno eleitoral, com a queda sucessiva de três gabinetes ministeriais e uma crescente ameaça de destituição por parte do Congresso. Nos últimos 15 dias, Castillo trocou duas vezes o pre­si­den­te do Conselho de Ministros.

O jornal El Comercio, porta-voz da diminuta elite financeira local, mandou-lhe duro recado em editorial de 6 de fevereiro. O título diz tudo: “A renúncia é a melhor saída”. A cada revés, seu governo, eleito com viés de esquerda, caminha mais para a direita.

Do programa de governo, centrado em ações do Estado em favor de educação, saúde e direitos dos povos originários, resta uma vaga lembrança. Sobre o lançamento de um processo constituinte, nem uma palavra. Semana após semana, a maior parte do tempo do chefe de governo e de seu entorno imediato é gasta na tarefa de apagar incêndios para não ser enxotado da Casa de Pizarro, imponente palácio de governo, no Centro de Lima.

A domesticação de um candidato com verborragia quase revolucionária repete como farsa os recuos impostos a Ollanta­ Humala, que também se elegera com a promessa de um novo país a seus eleitores. O abraço de Castillo em Jair Bolsonaro, que lamentara sua vitória nas urnas, em Porto Velho (RO), em 7 de fevereiro, revela mais uma cena de pastelão numa situação de total falta de rumos.

A hesitante capacidade de liderança de Castillo pode ser arrolada como uma das causas das instabilidades. A partir daí, emerge uma administração que prima pelo amadorismo diante da ferocidade de uma direita ancorada em uma economia primário-exportadora. Dividido entre meia dúzia de postulações no primeiro turno da disputa de 2021, o conservadorismo local converge firmemente nos ataques ao presidente da República.

A primeira crise no governo aconteceu 19 dias após a posse, com a renúncia do chanceler Héctor Béjar, antigo militante de esquerda, acusado de simpatias com o terrorismo. Em 6 de outubro, caiu o presidente do Conselho Ministerial, o engenheiro Guido Bellido, dirigente do ­Peru Libre, partido de Castillo. O auxiliar tornou-se alvo da direita ao revelar a intenção de nacionalizar a exploração dos campos de gás de Camisea, os maiores da América Latina, concedidos à gigante argentina – com sede em Amsterdã – ­Pluspetrol. Castillo nomeou então a deputada Mirtha Vásquez para a presidência do Conselho, o que levou ao rompimento do Peru Livre com o governo. As turbulências não cessaram. Advogada focada nas áreas de meio ambiente e direitos humanos, Vásquez decidiu manter-se solidária ao secretário do Interior, Avelino Guillén, que enfrentava casos de corrupção nas forças de segurança pública, no início deste ano. Guillén, jurista que atuou na condenação de Alberto Fujimori por corrupção e assassinato, fora escolhido pelo jornal espanhol El País uma das cem personalidades globais de 2008. Ao não obter apoio presidencial para a destituição do ex-chefe de polícia Javier Gallardo, decidiu pular do barco, acompanhado por sua colega, em 31 de janeiro.

Num ato quase desesperado, o presidente indicou no início do mês o deputado Héctor Valer, que se apresenta como integrante do Opus Dei, para a chefia do primeiro escalão. Nova trapalhada: imediatamente, a mídia local levantou acusações de violência doméstica contra sua mulher e filha. O escândalo foi tamanho que o próprio Opus Dei tratou de lançar uma nota na qual alega nada ter a ver com o indigitado.

O professor esquerdista trocou o ministério outra vez e vive sob ameaça de impeachment

Com base parlamentar fragmentada e minoritária no Congresso e um partido improvisado, com quem vive às turras, Castillo tornou-se, ao longo dos meses, suscetível a todo tipo de pressão conservadora. Somente no fim de janeiro o presidente concedeu uma de suas primeiras entrevistas desde a posse. Diante dos microfones da Radio Exitosa, declarou estar aprendendo a fazer política. “Não fui preparado para chegar à Presidência da República”. A frase rendeu-lhe severas críticas na imprensa e no Parlamento.

Há dificuldades adicionais colocadas diante de qualquer presidente do país andino. Desde a primeira Constituição peruana, em 1828, as oligarquias regionais estabeleceram amarras sólidas para a divisão de poder entre elas. São verdadeiras cláusulas pétreas, mantidas pelas seis cartas posteriores, até a atual, promulgada em 1990. Trata-se da possibilidade da destituição do presidente da República por motivos quase aleatórios, sintetizados na alegação de “incapacidade moral” para o exercício do cargo. Para a abertura de um processo de impeachment é preciso que apenas 20% dos 130 congressistas (26 parlamentares) realizem um pedido de vacância, que 40% (52) aceitem e que 66% (87) aprovem a destituição.

Vigora no país um parlamentarismo enviesado, que coloca o presidente da República permanentemente sob as balizas de ocasionais maiorias legislativas. O chefe do Conselho, que faz as vezes de primeiro-ministro, é de livre escolha presidencial, com anuência do Legislativo. Mas uma moção de censura a um ministro aprovada por maioria simples basta para sua destituição.

O emaranhado não para por aí. O presidente, por sua vez, pode dissolver o Congresso e convocar novas eleições, caso tenha dois gabinetes ministeriais destituídos sucessivamente. No intervalo entre a destituição e a nova eleição, que pode durar até quatro meses, o mandatário tem a prerrogativa de administrar o país por decretos, a serem posteriormente ratificados pela nova legislatura.

Cinco processos de impeachment foram abertos nos últimos cinco anos e dois presidentes perderam seus mandatos. São eles Pedro Pablo Kuczynski (2018) e seu ex-vice Martín ­Vizcarra (2020). Assim como Castillo, que venceu o segundo turno com 50,13% dos votos totais, Kuczynski foi eleito por estreitíssima maioria de 50,12% dos votos. Ambos derrotaram Keiko Fujimori, filha do ­ex-ditador Alberto Fujimori.

Os horizontes econômicos não são ruins, o que pode tirar o impeachment da cena imediata. Sensatamente, o mandatário atendeu à demanda da presidenta da Suprema Corte, Elvia Barros, e decidiu convocar o Conselho de Estado, formado pelos presidentes dos três poderes, entre outros, para discutir a crise.

Castillo chega ao seu quarto gabinete sem saber exatamente o que fazer nos próximos quatro anos e meio que lhe restam de mandato. Faça o que fizer, o governo foi capturado por aqueles contra quem vociferava meses atrás. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Duro aprendizado”

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