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Mugabe já era. E a corrupção?

A quartelada contra o ditador do Zimbábue não reflete uma “revolução popular”, mas uma redistribuição do poder entre a elite dominante

Robert Mugabe e a esposa Grace: mais de três décadas no poder
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A qualquer distância do bairro elegante de Borrowdale, em Harare, onde Robert Mugabe e sua mulher, Grace, estão detidos em sua ampla mansão, fica evidente a escala dos desafios enfrentados pelo Zimbábue, que foi um dos países mais ricos da África. 

Se na capital as ruas estão esburacadas, fora dela estão rachadas e se esfarelam. Os bancos não têm dinheiro e os cidadãos têm de esperar horas para sacar até pequenas quantias. Os únicos empregos são no serviço público, mas os salários raramente são pagos. Os melhores e mais inteligentes fugiram há muito para o exterior. Os armazéns estão vazios, os campos, inertes. A loja mais movimentada nas aldeias rurais é a “loja de garrafa”, que vende bebidas alcoólicas baratas.

O Zimbábue é famoso por seus recursos naturais, mas ressuscitar a economia depois de 20 anos de uma administração desastrosa e extensos saques das autoridades corruptas é uma grande empreitada. O sistema bancário precisa ser reiniciado do zero, a fé na moeda nacional, restaurada, e as finanças do governo, reabastecidas de alguma forma. As vastas dívidas contraídas pelo regime de Mugabe precisam ser reagendadas ou perdoadas, e novos fundos arranjados para reconstruir a infraestrutura em ruínas do país.

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Os investidores há muito se interessavam pelo Zimbábue, mas foram desanimados pelo risco significativo de que qualquer fundo seja roubado ou qualquer empreendimento de sucesso, desapropriado. Agora podem ter certeza de que isso não acontecerá? Os velhos hábitos demoram para morrer.

O partido governante, Zanu-PF, e seus aliados militares lançaram sua quartelada para expurgar uma facção ambiciosa que ameaçava sua posição, não porque quisessem uma reforma estrutural que pusesse fim a seus esquemas lucrativos e seu rentismo.

Também há problemas práticos imediatos. A polícia é considerada uma criação de Mugabe pelos militares e seus aliados, mas alguém precisa patrulhar as ruas. É necessário decidir o destino do camarada Bob e de Grace, agora que não são mais presidente e primeira-dama. É preciso formar um governo, possivelmente realizar eleições. 

Mnangagwa, longo histórico de abusos (Foto: Wikimedia)

É esse processo político que representa o maior desafio. A população do Zimbábue tem grandes esperanças de uma nova era democrática. Mas a deposição de Mugabe foi uma redistribuição do poder dentro da elite governante do país, e não uma revolução popular.

Emmerson Mnangagwa, o vice-presidente deposto, que provavelmente sucederá a Mugabe quando ele enfim deixar o poder, não é um democrata professo. Ele foi o principal agente da lei para Mugabe, com uma longa história de abusos aos direitos humanos. Mnangagwa, 75 anos, terá de fazer algumas concessões à opinião pública do Zimbábue e às esperanças da comunidade internacional, no mínimo para conseguir o dinheiro de doadores e da diáspora de que o país muito precisa. Ele tentará, porém, fazer isso reforçando, e não enfraquecendo, o poder do partido.

Por quanto tempo os zimbabuenses vão tolerar o domínio de um pequeno grupo de septuagenários, veteranos de uma luta armada que ocorreu antes do nascimento da maioria da população? 

Uma pergunta semelhante foi feita em outros lugares da África nas últimas décadas. Ela é ouvida hoje na vizinha África do Sul, onde o brilho do Congresso Nacional Africano diminuiu constantemente durante seus 23 anos no poder.

O fim eventual de partidos como o Zanu-PF é inevitável. Mas também o trauma que acompanha sua morte.  

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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