Entrevistas

‘É um problemão tê-lo como candidato e um problema tirá-lo’

Para Rafael Ioris, professor da Universidade de Denver, a repercussão do embate entre Trump e Biden no debate na CNN reforça o oba-oba republicano e consolida o desânimo democrata

Foto: Andrew Caballero-Reynolds/AFP
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A repercussão do debate entre Joe Biden e Donald Trump reforça os temores de que a imagem de um presidente fora de forma, física e cognitivamente, favoreça o adversário extremista. Manter Biden candidato se tornou um grande problema para o Partido Democrata, mas escolher um novo nome, a esta altura, seria um processo traumático e dolorido para toda a sociedade. A avaliação é de Rafael Ioris, professor de História e Política da Universidade de Denver, no Colorado.

“É um problemão tê-lo como candidato e um problema tirá-lo também”, resume Ioris. “A cultura política norte-americana é muito moderada, conciliatória, conservadora. Não quer dizer que talvez não seja necessário, mas seria muito traumático.”

A questão não é, contudo, meramente etária. Embora Trump, 78, seja apenas três anos mais jovem que Biden, os embates seduzem a já bastante motivada base republicana, ao mesmo tempo que aumenta o desânimo entre os democratas.

“A narrativa que se construiu, de que Biden perdeu, vai se disseminar pelas redes sociais e confirmar ainda mais as posições que as pessoas já tinham”, afirma Ioris a CartaCapital.

Trump soube aproveitar o formato do debate, que favoreceu a desinformação sobre temas sensíveis como o aborto (ele chegou a afirmar que os democratas desejam matar crianças após o nascimento), a economia e o ataque ao Capitólio em janeiro de 2021. Os moderadores da CNN, Jake Tapper e Dana Bash, não reagiram e nem Biden conseguiu responder à enxurrada de desinformação do adversário.

Diante da repercussão controversa nas redes, Biden contemporizou: “Não ando com tanta facilidade como antes, não falo com tanta fluidez como antes, não debato tão bem como antes, mas sei o que sei: sei dizer a verdade”, disse nesta sexta-feira, 28.

Leia os destaques da entrevista:

CartaCapital: Qual é sua avaliação geral sobre o debate?

Rafael Ioris: Biden teve uma atuação sofrível, muito aquém do que os democratas esperavam. Acho que as pessoas sabiam que ele estava mais frágil, mais velho, mas não a esse ponto. Trump, claramente, estava alinhando uma mentira atrás da outra e Biden não conseguiu responder. O pessoal que fez o debate também não chamou a atenção para dizer que não era verdade.

E Biden se enrolou, não teve energia, nem sei se teve acuidade mental. Estava muito frágil até do ponto de vista físico, na voz e na sua capacidade de responder. Então, se tornou um debate que Trump dominou, independentemente de as exposições serem quase todas mentirosas.

Achei Trump bem treinado, muito disciplinado. Não interessava a pergunta, ele dizia o que queria. A impressão para as pessoas em geral foi que Biden estava frágil e perdeu o debate. Não é só o debate, é como o debate repercute na sociedade. Complica muito a situação.

CC: Há chances reais de o Partido Democrata retirar a candidatura de Biden e lançar outro nome?

RI: É muito complicado. Acho que já estava um pouco nítida a fragilidade de Biden na viagem que ele fez à Europa para se encontrar com o G7. Há várias imagens muito sofridas dele.

Não há retrospecto histórico muito claro sobre isso, a não ser de uma maneira muito traumática. Normalmente os aspectos históricos de um presidente em exercício que abre mão de uma candidatura são uma coisa unilateral e uma posição pessoal de reconhecer a fragilidade e dizer que não concorrerá.

É o que já ocorreu, mas haver uma disputa no partido além das primárias, um movimento para forçá-lo a sair? Seria problemático na recepção em uma base mais histórica dos democratas, talvez entre sindicalistas mais velhos, religiosos. Ou seja, é um problemão tê-lo como candidato e um problema tirá-lo também.

A cultura política norte-americana é muito moderada, conciliatória, conservadora. Não quer dizer que talvez não seja necessário, mas seria muito traumático, sem dúvida.

CC: Quais seriam os “candidatos a candidato”?

RI: Os nomes que existem são os do governador aqui da Califórnia, Gavin Newsom, e o da governadora de Michigan, Gretchen Whitmer. Especulam fora desses dois o Bernie Sanders e até a Michelle Obama.

Nenhum deles é um nome claro, um nome consensual, que necessariamente ganharia do Trump. Acho que uma mulher muito dificilmente ganharia. Mesmo o governador da Califórnia tem uma imagem muito de almofadinha. E Sanders, que seria o nome mais reconhecido, um cara com respaldo, levaria a agenda do partido muito mais à esquerda.

CC: Se Kamala Harris fosse mais popular, poderia ser uma alternativa…

RI: Pois é, seria o caminho normal. Pessoas do partido falam que ela ficou apagada, ficou guardada no armário. Eles não a utilizaram por três anos e agora seria muito difícil tentar lançá-la. Acho que Kamala Harris tem uma menor estrutura política hoje do que há três anos. Ela é menos conhecida e badalada hoje do que quando era candidata à nomeação na eleição que Biden ganhou.

CC: O debate deve ter um impacto real, por exemplo, nos eleitores indecisos?

RI: Os debates de hoje não têm a importância histórica que tiveram. Por isso eu digo que não é só o debate, é a repercussão dele. Esse eu acho que será o maior impacto: como se constrói a narrativa após o debate.

A narrativa que se construiu, de que Biden perdeu, vai se disseminar pelas redes sociais e confirmar ainda mais as posições que as pessoas já tinham. Nos republicanos, evidentemente energizará a base de Trump; nos democratas, consolidará um certo desânimo com um candidato que os deixa inseguros quanto a se deveria ir para a reeleição.

CC: Trump mentiu muito no debate, mas gerou bons cortes…

RI: Ele disse que na invasão do Capitólio ofereceu 10 mil guardas nacionais para Nancy Pelosi, que era a presidente da Casa. Isso é mentira, mas fica por isso mesmo.

Isso é estruturalmente trágico na situação em que estamos, em que a política é basicamente de espetáculo. Importa só a performance, não importam muito os fatos. Um eleitor indeciso que veja esses memes todos dizendo que Biden destruiu o país pode se desanimar de vez a ir votar.

CC: Qual deve, então, ser o tom da campanha a partir de agora?

RI: Quem está controlando a narrativa e o momentum da campanha são os republicanos. Eles já estão muito mais aguerridos desde que Trump foi derrotado, para se vingarem nessa narrativa de que eles foram roubados. Estão muito motivados… Tem muito amadorismo na campanha democrata na comparação com a eficiência republicana.

CC: Trump, a propósito, não prometeu aceitar o resultado da eleição…

RI: Exatamente. Quando ele foi sentenciado em Nova York, arrecadou naquela mesma noite 50 milhões de dólares em doações. Olhe a loucura. Em vez de a sentença diminuir o apoio na base dele para doações, aumentou. As pessoas estão com essa noção de que “a gente tem de vingar o nosso candidato, o nosso herói”.

Eles baterão nos pontos que os favorecem, como a imigração. Há também a questão da inflação. Trump vai bater muito nisso de que o que Biden destruiu a economia. Não é verdade, mas como de fato houve inflação, as pessoas estão ressentidas, porque tudo é mais caro.

E há o tema da segurança nacional. Trump vai criar essa imagem de que o país está sob ameaça, sob risco, de que Biden não consegue estar à altura dos desafios da China.

Os democratas não têm conseguido responder a isso. Biden teria muito a mostrar, tem uma agenda legislativa histórica, muito mais bem-sucedida do que provavelmente ocorreu com os últimos três presidentes democratas. Há plano de reindustrialização, de energia renovável, mas ele não consegue falar sobre isso,

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