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O poder do cabelo

As mulheres lideram, outra vez, as revoltas contra a opressão do regime islâmico no Irã

Protestos no exterior contra a morte da jovem iraniana - Imagem: Niklas Halle’n/AFP
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Foi nos dias estranhos entre a morte da rainha Elizabeth e seu funeral que as más notícias do Irã romperam a cobertura dos rituais de luto do Estado. A notícia que perfurou isso foi o relato de que uma jovem havia morrido sob custódia da polícia da moralidade do Irã.

Mahsa Amini, curda iraniana de 22 anos, foi detida por “usar errado” o ­hijab, lenço de cabeça. Ela visitava parentes em Teerã com seu irmão, quando a polícia moral a questionou sobre alguns fios de cabelo que apareciam sob seu hijab-padrão. De acordo com o irmão, ela ficou sob custódia por apenas duas horas antes de desmaiar e ser levada ao hospital, onde ficou em coma antes de morrer, em 16 de setembro. As autoridades alegaram que ela teve um ataque cardíaco por uma condição preexistente. Sua família nega e afirma que sua cabeça e seu corpo estavam cobertos de hematomas e sinais de espancamento.

Quando começaram os protestos na terra de Mahsa, o Curdistão, província no oeste do Irã, estremeci com as possíveis prisões e a violência que poderiam ser infligidas aos participantes, mas não pensei mais a respeito. Protestos contra o tratamento abusivo de mulheres, minorias e estudantes tornaram-se comuns nos últimos anos, e me acostumei com relutância a observar passivamente, enquanto as autoridades iranianas reprimem as manifestações populares pacíficas com violência cada vez maior.

Os curdos étnicos há muito sofrem discriminação no Curdistão. O nome verdadeiro de Mahsa – Jhina – é curdo e, como tal, não pôde ser registrado em sua certidão de nascimento, pois apenas nomes persas e alguns islâmicos são legais. Existem leis contra o ensino da língua curda nas escolas. Acontece que minha pátria paterna é a mesma cidade de onde veio Jhina Amini, e quando soube dos protestos no Curdistão rezei para que minha família estivesse segura.

Apesar de 250 manifestantes terem sido presos e cinco mortos durante dois dias de protestos no Curdistão, as manifestações não pararam. Na verdade, elas se espalharam pelo resto do país, e o grito curdo de “Mulher Vida Liberdade” tornou-se o canto dominante naqueles que foram os maiores protestos nacionais no Irã, desde a revolução de 1979. O que começou como um protesto contra o hijab obrigatório logo se tornou demanda por liberdade. “Mulher Vida Liberdade”: é a primeira vez na história iraniana que um slogan exige algo positivo, em vez do fim ou da morte de alguém ou algo. O tratamento brutal de Mahsa Jhina Amini por causa do hijab “errado” – e agora muitas outras jovens, incluindo Nika Shakarami, 16 anos, morta nestas semanas – foi a faísca que acendeu essa conflagração de raiva.

Há força e energia nos protestos atuais. As jovens perderam o medo que limitava suas mães e avós

O verdadeiro calor desse movimento vem, no entanto, de décadas de repressão e opressão de qualquer oposição viável ao regime clerical linha-dura, economia em queda livre, a corrupção em massa e a hipocrisia da elite dominante. Esta se recusa a permitir que as mulheres iranianas afrouxem o hijab obrigatório, mesmo quando seus próprios filhos e filhas perambulam pelas ruas de Los ­Angeles vestidos com roupas reveladoras e postam fotos de festas em luxuosas mansões compradas com as riquezas roubadas do país. O lenço de cabeça agitado pelas mulheres iranianas, para o povo do Irã, não tem mais nada a ver com o islã. É um símbolo da opressão que o regime infligiu a seu próprio povo em nome da religião. Este não é um apelo ao fim do islã, é um apelo ao fim dos símbolos de poder e abuso do Estado, um apelo ao qual até os iranianos religiosos aderiram. Como minhas tias iranianas tranquilamente devotas me dizem, este regime pegou os símbolos de sua fé e os transformou em ferramentas para reprimir a metade da população. Elas e mulheres como elas têm se juntado aos protestos ao lado das meninas que corajosamente tiraram o hijab para enfrentar as forças do regime com os cabelos soltos.

As mulheres iranianas exigem liberdade desde que o aiatolá Khomeini assumiu o poder, em 1979. A primeira manifestação contra o hijab obrigatório ocorreu três semanas após a chegada de ­Khomeini. Antes da revolução, as mulheres iranianas tinham algumas das leis mais liberais do Oriente Médio: podiam vestir o que quisessem, podiam trabalhar e até ser juízas, tinham direitos iguais ao divórcio e à guarda dos filhos e votavam desde 1963.

A primeira coisa que o aiatolá ­Khomeini fez depois de tomar o poder, implementando o que ele chamou de “governo de Deus”, foi revogar a Lei de Proteção à Família de 1975, a mais progressista da região. Dados todos os problemas urgentes que o Irã revolucionário enfrentou em 1979, é revelador que o foco da primeira lei de Khomeini foi para reduzir a idade de casamento para meninas, de 18 para 9 anos, e retirar muitos direitos das mulheres.

Foi somente em 1983 que o hijab obrigatório finalmente se tornou lei para todas as mulheres no Irã e, sem dúvida, foi apenas por causa da devastadora guerra com o Iraque iniciada em 1980 que o regime a conseguiu impor. O fato de as mulheres iranianas terem o direito de trabalhar, votar e aparecer em espaços públicos é uma prova de sua luta implacável por direitos na República Islâmica.

Da população iraniana de 84 milhões de indivíduos, com taxa de alfabetização de 97%, as mulheres representam 65% dos graduados universitários. E tudo isso para um gênero cuja palavra no tribunal vale a metade daquela de um homem (você precisa de duas testemunhas femininas para atestar, enquanto um homem bastará), que não pode cantar, dançar ou mostrar seu cabelo ou corpo em público, e pode se casar com 13 anos. Revoltas significativas no Irã lideradas por mulheres ocorreram em 1999, 2005, 2009, 2017 e novamente em 2019. A partir de 2009, os homens se juntaram às mulheres nesses protestos, muitas vezes adotando o hijab para expressar sua igualdade com elas.

Há força e energia nos protestos ­atuais. A visão de jovens com cachos esvoaçantes a remover imagens dos dois aiatolás idosos Khomeini e Khamenei, o atual líder supremo, traz lágrimas aos meus olhos e faz meu coração cético arder de esperança. É como se as Fúrias tivessem sido soltas no Irã e essas jovens extraordinariamente corajosas, que estão preparadas para enfrentar balas pelo direito de escolher como viver, tivessem perdido todo o medo que manteve as gerações anteriores reprimidas. •


*Kamin Mohammadi é autora de The Cypress Tree (ed. Bloomsbury).
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O poder do cabelo”

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