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Os olhos bem abertos de Che Guevara

Uma viagem pela rota onde Che viveu seus últimos momentos revela um legado de orgulho, ironias e a mística de um revolucionário que ainda desafia o tempo

Che Guevara, o médico que se tornou missionário da Revolução – Imagem: René Burri
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Antes do embarque, soldados bolivianos fecharam os olhos de Ernesto Rafael Guevara de La Serna, de 39 anos de idade.

O helicóptero de observação Hiller OH-23, fabricado nos Estados Unidos, tinha apenas dois lugares. Por isso o corpo, sobre uma maca, foi amarrado num dos esquis de aterragem da aeronave, conhecida como Corvo. O major Jaime Niño Guzmán acionou o motor.

Quando o Corvo decolou, Che fez seu único vôo sobre a região, que conhecera apenas por terra, a partir das incursões de guerrilheiros que mapeavam riachos, rios e montanhas.

Depois de deixar o vilarejo na encosta, o Corvo ganhou altitude e sobrevoou Pucará. Foi assim que Che passou uma única vez pela cidade boliviana que se autodenominou a “capital do céu”.

Os visitantes de hoje reconhecem que o título é apropriado: os fins de tarde na região oferecem um espetáculo deslumbrante. Quando o sol se põe, ressalta a silhueta das montanhas e tinge as nuvens existentes em tons de vermelho.

Condores e falcões patrulham o céu; um carpinteiro das Yungas, espécie local do picapau, martela um tronco de árvore na trilha do Che.

Fim de tarde na estrada entre Pucará e La Higuera (Foto: Luiz Carlos Azenha)

A trilha, um antigo caminho comunitário, foi usada em 8 de outubro de 1967 para tirar Che, com as mãos amarradas, da Quebrada do Churo, um riacho no pé da montanha onde ele se rendeu ao Exército boliviano com um ferimento de bala na panturrilha

Guevara subiu a trilha de um quilômetro até a escola de La Higuera junto com os dois guerrilheiros que o acompanhavam, o boliviano Simeón Cuba Saraiva (o Willy) e o peruano Juan Pablo Chang Navarro (o Chino).

Depois da execução dos três a sangue frio, no dia 9, tirar os corpos por terra atrasaria os planos do Exército de anunciar a vitória sobre a guerrilha, ansiosamente aguardada em Washington.

Quando Che foi colocado na lavanderia do hospital, seus olhos estalados causaram espanto, temor e admiração

A CIA acompanhava Guevara de perto e os Estados Unidos treinaram um tropa especial boliviana para caçá-lo. Recorreu-se ao helicóptero para o transporte do troféu. O destino do Corvo foi a cidade de Vallegrande.

Nesta história de intermináveis ironias, o helicóptero pousou nas proximidades do Hospital Senhor de Malta, onde militares de alta patente e jornalistas esperavam.

Senhor de Malta é um Cristo negro, crucificado, cuja imagem teria viajado desde a ilha do Mediterrâneo até a Bolívia, razão pela qual desperta fidelidade fervorosa dos católicos locais.

Vallegrande é, por isso, um lugar de improvável sucesso para um revolucionário comunista.

Mas quando Che foi colocado na pedra de concreto da lavanderia do hospital, os olhos estalados do guerrilheiro causaram espanto, temor e admiração.

Ninguém sabe precisar se foi por causa do vôo ou das injeções de formol, que foram dadas para permitir que o corpo de Che ficasse exposto ao público por quase 48 horas.

Uma das fotos do Che que causaram espanto por causa dos olhos abertos, exposta em La Higuera (Foto: Luiz Carlos Azenha)

A enfermeira Susana Osinaga Robles deixou seu testemunho: “Não sabíamos quem era o Che, era a primeira vez que o conhecíamos. Este senhor nos impressionou pelo seu olhar, mudávamos de lugar e ele nos acompanhava com o seu olhar. Tinha uma barba cheia, parecia Cristo”.

Ao expor o corpo de Che como se fosse um bicho, os fardados bolivianos pretendiam mandar uma mensagem dupla: aos camponeses potencialmente apoiadores de uma revolução e a Washington sobre a fidelidade dos militares locais.

Antes de sumir com o corpo de Guevara, altas patentes foram à lavandeira tirar fotos ao lado do cadáver.

O major piloto do helicóptero eventualmente se tornou chefe da Força Aérea Boliviana e se aposentou como general.

O chefe do Exército, Alfredo Ovando Candía, é visto numa foto cutucando o cadáver de Che. Ele próprio seria recompensado, mais tarde, com a presidência da Bolívia.

Candía e seu colega general Barrientos haviam chegado ao poder num golpe contra o presidente Victor Paz Estenssoro, com apoio dos Estados Unidos, meses depois da quartelada que implantou a ditadura no Brasil, em 1964.

Os olhos bem abertos de Che, porém, frustraram o esforço de propaganda do Exército e da CIA, dando origem à mística que perdura mais de meio século depois.

O imigrante alemão Erich Blossi foi ver o corpo, com um amigo e uma máquina fotográfica: “Ficamos surpresos porque o cadáver do Che estava com os olhos abertos e parecia estar vivo, só faltava falar”.

A Rota do Che fica integralmente no departamento de Santa Cruz, a principal base da extrema-direita boliviana

Os testemunhos são reproduzidos com destaque no museu de Vallegrande, construído ao lado da cova coletiva onde Che foi enterrado clandestinamente. A versão oficial era de ele havia morrido em combate e o corpo, incinerado.

A estrada que leva de Vallegrande a La Higuera, passando por Pucará — no que é conhecido como Rota do Che — segue sendo de terra.

O francês Juan Lebras percorreu o caminho para fotografar. Gostou, voltou e decidiu ficar. Comprou o que é conhecido como “Casa do Telegrafista”, mencionada no diário do Che.

O guerrilheiro mandou um emissário visitar a única casa com telefone de La Higuera. Foi assim que descobriu que havia um enorme cerco do Exército na região.

Lebras transformou a casa numa pousada.

Nas horas vagas, percorre as montanhas da região atrás de vestígios da passagem dos guerrilheiros. Lebras reproduz uma versão que é compartilhada por muitos moradores da região: Che sucumbiu por conta de múltiplas traições.

Traição dos camponeses que encontravam guerrilheiros e corriam para dar informações ao Exército.

Traição de comunistas bolivianos, que não deram apoio oficial à guerrilha.

Traição, neste caso jamais comprovada, de Haydée Tamara Bunke Bider, a Tânia. A revolucionária alemã oriental, nascida na Argentina, deveria ser o principal contato do Che em La Paz. As versões de que Tânia teve envolvimento romântico com Che ou era agente da União Soviética que monitorava os movimentos da guerrilha não tem sustentação documental.

Che era uma dor-de-cabeça para Moscou, que controlava a liderança  do Partido Comunista local. Sua ideia era criar um novo Vietnã na Bolívia, para aliviar a pressão de Washington sobre Cuba. Os soviéticos temiam uma reprise da Crise dos Mísseis de 1962, que levou o mundo à beira do precipício nuclear.

O governo de Lyndon Johnson não mordeu a isca de Che: atuou de maneira discreta na Bolívia.

O francês Juan Lebras não é religioso, mas a ideia de traição que ele espalha nas conversas com os hóspedes tem grande ressonância entre os católicos locais. O Che apunhalado pelas costas se enquadra na imagem do Cristo crucificado, traído por Judas.

A lavanderia já não pode ser pichada: tornou-se formalmente um centro turístico (Foto: Luiz Carlos Azenha)

La Higuera, hoje, parece um vilarejo fantasma. Mas, não é. Os moradores saem de casa de madrugada, especialmente depois do plantio de milho, para espantar as aves que ameaçam as plantações e cuidar do gado.

Ironicamente, na trilha do Che existem marcas de latitude e longitude feitas pelo governo boliviano para definir a divisa entre propriedades.

A reforma agrária, que os camponeses bolivianos conquistaram depois de muitas baixas, na revolução de 1952, só se concretizou plenamente nos governos de Evo Morales, testemunha nosso guia, Javier Toledo.

Ele atribui a relativa falta de entusiasmo dos bolivianos com Che às lembranças trágicas da repressão do Exército nos anos 50 e às recompensas em dinheiro oferecidas a quem delatasse os guerrilheiros.

Toledo nos relata fake news que hoje se propaga sobre Evo Morales: o ex-presidente teria uma fortuna guardada no Banco do Vaticano, fruto de negociatas feitas com a China quando estava no poder.

Assim como acontece no Brasil, a Bolívia vive uma intensa polarização política, aprofundada pelo regionalismo.

A Rota do Che fica integralmente no departamento de Santa Cruz, a principal base da extrema-direita boliviana.

Independentemente de preferência ideológica, Che Guevara é, para os moradores de La Higuera, uma fonte de reforço no orçamento doméstico.

Eles se organizaram de forma comunitária para manter um pequeno museu no local onde o Che foi fuzilado, uma pousada para turistas e a trilha por onde ainda hoje transportam gado. Há sempre um morador de plantão com as chaves do museu.

Não se vê crianças nas ruas. Os jovens se vão, em busca de emprego em Vallegrande, Samaipata ou Santa Cruz de La Sierra.

O vilarejo recém reformou a igreja onde festeja a padroeira, Nossa Senhora de Guadalupe. Vige o ecumenismo. A festa católica convive com a celebração em torno do Che, todo outubro, quando o povoado recebe dezenas de turistas de todo o mundo.

Em maio de 2024, o livro de visitantes do museu do Che estava na página 195, registrando desde o início do mês: seis visitantes da Bolívia, quatro da Inglaterra, três cada da Itália e do Brasil, dois da Suíça, da Alemanha e da Espanha, um da Argentina, da Irlanda, de Cuba e da Índia.

Livro de visitantes na escolinha/museu: um por dia, na média

O dono da Casa do Telegrafista não serve Coca-Cola, em nome do combate à globalização. Produz um licor à base de folhas de coca. Aceita dólares, que ninguém é de ferro.

Da escolinha original, onde Che passou 24 horas vivo, sobraram apenas a porta e algumas carteiras. A entrada custa 5 bolivianos, cerca de 4 reais. É um museu cujo acervo cresce com objetos deixados pelos fãs do guerrilheiro.

Há um boné do MST, um livro sobre Lula em espanhol, uma reprodução do diário do Che com letra de médico e um livro sobre ele em chinês.

Alejandra, de 23 anos de idade, deixou uma carta dirigida a Che num mural:

“Obrigado por escolher a Bolívia, desde aqui sua luta continua, por um mundo mais justo, pela Pátria Grande, por uma vida digna, seu nome é símbolo da luta dos pobres”.

O indiano Soubhik Sen, que mora nos Estados Unidos, pagou um táxi para fazer o trajeto desde Santa Cruz de La Sierra. Uma viagem de mais de 600 quilômetros para passar apenas algumas horas em La Higuera.

O interesse de Soubhik ganhou força depois que ele viu os filmes Diário de Motocicleta,  de Walter Salles, e Che, de Steven Soderbergh.

“Quando um homem está pronto para arriscar a vida, deixando de lado o conforto que poderia ter tido, isso é extraordinário”, explicou.

O Che como símbolo de liberdade individual, não necessariamente do socialismo, ganhou força num mundo em que carregamos o trabalho no celular e somos permanentemente monitorados através das redes sociais.

O repórter na estrada que leva a La Higuera.

Soubhik preferiu não visitar a lavanderia, nem a cova coletiva onde o corpo de Che ficou escondido por quase 30 anos, em Vallegrande, alegando que não conseguiria segurar as lágrimas.

Gonzalo Guzmán, nosso guia comunitário em Vallegrande, relembra a reticência de algumas autoridades locais em homenagear Che.

Os obstáculos foram contornados com arrecadação de apoiadores e ajuda dos governos da Argentina e de Cuba.

Numa concessão aos conservadores, a placa oficial homenageia os 51 guias, cadetes, soldados e oficiais do Exército mortos pela guerrilha, bem como os 36 guerrilheiros: além de Che e Tânia, 18 bolivianos, 13 cubanos e três peruanos.

A lavanderia do hospital hoje também é ponto turístico.

Em outra ironia histórica, durante o governo de Evo Morales médicos cubanos ficaram baseados em Vallegrande. Numa coluna de concreto da lavanderia, deixaram uma mensagem ao Che: “39 anos depois, tornamos realidade seus sonhos”.

O sargento que assassinou Che Guevara cumprindo ordens superiores, Mario Terán Salazar, já tinha oferecido uma oportunidade de ouro aos cubanos. Aposentado, Terán fez uma cirurgia para retirar cataratas justamente com médicos de Cuba que visitaram a Bolívia numa missão anterior, batizada de Milagre.

O diário cubano Granma não perdeu a oportunidade: “Quatro décadas depois de Mario Terán tentar destruir um sonho e uma ideia, o Che voltou para vencer mais uma batalha”.

Aparentemente, Ernesto Rafael Guevara de La Serna jamais terá descanso.

Nas livrarias de Santa Cruz figura hoje com destaque um livro ilustrado pela imagem de Che com batom vermelho na capa. Trata-se de O livro negro da nova esquerda.

A obra é uma diatribe de extrema-direita, parte da guerra cultural em que está engajado o neofascismo planetário.

Os autores juntam na mesma bacia homossexualismo, aborto, pedofilia, indigenismo ecológico, direito-humanismo, pornomarxismo e feminismo radical, no que definem como “neocomunismo”.

Sugerem que o espírito de Che sobreviveu e agora está promovendo a rebelião contra a “tradição hetero-capitalista do Ocidente” – seja lá o que isso signifique.

Che talvez esteja sorrindo, com os olhos bem abertos, em algum lugar por perto da capital do céu.

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