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Sarajevo: após “um século de conflito”, divisões são profundas

No centenário do assassinato que serviu de estopim para a Primeira Guerra Mundial, moradores da capital da Bósnia esperam dar descanso aos fantasmas do passado

Em 28 de junho, integrantes da delegação dos monarquistas da Europa Central se preparam para colocar coroa de flores no local onde o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono o Império Áustro-Húngaro, foi assassinado
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Por Andrew MacDowall, em Sarajevo

Ao depositar uma coroa de flores no lugar onde o arquiduque Francisco Ferdinando e sua mulher grávida, Sofia, foram assassinados cem anos atrás, Aleksandar Simec e Alexander Schneider explicam por que acreditam que a morte do herdeiro do trono austríaco foi uma tragédia para a Europa e para o mundo.

“Se esse acontecimento trágico não tivesse ocorrido, a guerra e milhões de mortes poderiam ter sido evitadas. O fim do Império Austro-Húngaro criou um vácuo político na Europa Central que foi preenchido primeiro pelos nazistas e depois pelo comunismo soviético. “Os Habsburgo [a dinastia governante austríaca] teriam resistido”, diz Schneider, um ativista austríaco da Aliança Preto e Ouro, organização que faz campanha pela restauração da monarquia austríaca e uma união centro-europeia nas linhas do império Habsburgo.

Francisco Ferdinando e Sofia foram mortos por Gavrilo Princip junto da Ponte Latina em Sarajevo, capital da Bósnia, em 28 de junho de 1914, ato que provocou a Primeira Guerra Mundial. Schneider inclina-se para colocar fotos do casal assassinado ao lado da coroa, enquanto Simec – um austríaco de nacionalidade iugoslava, usando rabo de cavalo e broche monarquista no paletó — explica que Francisco Ferdinando queria criar uma terceira entidade no Império Austro-Húngaro, para os eslavos como sérvios, bósnios e croatas. “Ele tinha a ideia de estabelecer uma espécie de Iugoslávia no interior do Império Austro-Húngaro.”

Anteriormente naquele dia, a Aliança refez o trajeto que o casal real percorreu em Sarajevo, mas em vez de parar no local do assassinato continuou o percurso pretendido até a estação ferroviária. “Começamos exatamente na mesma hora e viajamos exatamente na mesma velocidade”, diz Simec. “Queríamos desfazer simbolicamente o assassinato.”

Junto à placa comemorativa do assassinato, a coroa de flores da Aliança é acompanhada de outras duas e três maços de flores. Outra fotografia emoldurada do casal tem a legenda, em alemão: “O objetivo de suas vidas foi a paz das nações. Sua morte trouxe a guerra para as nações”.

A dois metros dali, uma placa provisória e um buquê de flores marcam o local onde estava Princip. Velas finas como as de uma igreja ortodoxa queimam. Um sérvio-bósnio considerado herói na era iugoslava, hoje seu legado é controverso. Como diz a placa, um memorial anterior a Princip foi removido em 1992 quando a Bósnia entrou na guerra.

Mas os memoriais estão atraindo muito menos atenção do que uma réplica da carruagem real estacionada ao lado, onde os turistas podem posar junto de um rapaz vestido como Francisco Ferdinando. Os edifícios ao redor ainda estão marcados pelos buracos de balas de uma guerra mais recente. Entre 1992 e 1995, a Bósnia foi dilacerada por conflitos entre bósnios muçulmanos, sérvios e croatas – 100 mil pessoas morreram e Sarajevo foi submetida a um sítio de 1.425 dias por tropas sérvias.

A cidade tem marcado o assassinato do arquiduque na esperança de “fechar o círculo” de um século de conflitos. Pouco antes da meia-noite, diversas apresentações ocorreram na Ponte Latina. Às 11 da manhã, hora aproximada do assassinato, turistas e jornalistas lotaram as ruas em torno da ponte e os bancos de Miljacka, embaixo das árvores na margem do rio, que brilham ao sol do verão. Acima paira a cadeia de montanhas da qual a artilharia sérvia bombardeou a cidade durante a guerra.

“Sarajevo é o foco: os olhos do mundo estão sobre nós”, diz o prefeito da cidade, Ivo Komsic. “Nós, de Sarajevo, queremos enviar uma mensagem de esperança para as novas gerações, de um futuro melhor.”

Uma peça central da comemoração foi um concerto da Orquestra Filarmônica de Viena no edifício Vijecnica, próximo à ponte, com o presidente da Áustria entre os convidados. O notável Vijecnica, em estilo pseudo-mourisco, é um símbolo especialmente importante de Sarajevo: foi a sede da prefeitura onde Ferdinando e Sofia participaram de uma recepção pouco antes de sua morte. Ele passou a abrigar a Biblioteca Nacional da Bósnia e Herzegovina e foi bombardeada por forças sérvias durante o sítio, com a perda de cerca de 2 milhões de livros. Os moradores contam que o ar ficou cheio de flocos de papel cobertos de elegante caligrafia árabe, que se transformavam em cinzas ao cair.

“O Vijecnica é muito importante para nós, é um símbolo de Sarajevo, e sua mistura de estilos arquitetônicos mostra que a cidade é um ponto de encontro de culturas”, diz Komsic.

O prédio passou por reformas durante 18 anos, mas especialistas em conservação disseram ao Observer que continua em mau estado. É outro ponto de discussão que ainda divide o país. Uma inscrição na parede em inglês e na língua local (até seu nome é contestado) refere-se a “criminosos sérvios”, que o presidente e primeiro-ministro da Sérvia chamaram de insulto e por isso boicotaram a cerimônia em Sarajevo.

A guerra não deixou apenas cicatrizes físicas e psicológicas. A Bósnia está dividida administrativamente na Federação, principalmente muçulmana e católica croata, e a altamente autônoma República Sérvia, cujo líder, Milorad Dodik, costuma pregar a independência. Em 27 de junho, no bairro separado de Sarajevo Oriental, dirigido por sérvios, Dodik inaugurou um parque chamado Gavrilo Princip, que exibe uma estátua do assassino.

Para muitos sérvios, Princip é um herói da independência eslava meridional. E 28 de junho foi uma data significativa mesmo antes de 1914, como o dia da batalha de Kosovo em 1389 na qual, segundo o entendimento popular, senão a exatidão histórica, a derrota sérvia levou a séculos de opressão otomana. É esse tipo de história complexa que os organizadores de exposições e eventos têm de navegar em um ambiente altamente carregado: a Bósnia terá uma eleição geral no outono [no hemisfério norte], e a retórica nacionalista deverá aumentar.

Uma exposição especial no Museu Histórico Nacional da Bósnia e Herzegovina, apoiada pelo Museu Imperial da Guerra de Londres, foi inaugurada em 26 de junho, registrando a visita de Ferdinando, o assassinato e o período de guerra no país. Ela começa com descrições de viajantes de Sarajevo em 1914, retratando um bazar agitado com artesãos muçulmanos e judeus, juntamente com uma nova cidade cheia de cafés e parques no estilo vienense.

“A ideia não é concentrar-se em um lado ou outro da história, mas ter Sarajevo como protagonista”, disse a diretora do museu, Elma Hasimbegovic. “Francisco Ferdinando não é o personagem principal, e não estamos nos concentrando na história nacional. Os bósnios lutaram dos dois lados, e queremos ver como as pessoas comuns foram afetadas pela guerra, lutando pela sobrevivência.”

O museu é uma vítima da política étnica do pós-guerra, pois não recebe verbas regulares do país, do governo da federação, da administração do cantão ou da cidade. Dezenove anos depois do fim do conflito bósnio, ele e outras sete instituições nacionais estão em um limbo legal e financeiro – não há ministério da Cultura nacional, pois a cultura é uma questão muito contestada entre os políticos étnicos. Estes são o foco da ira de todos os lados, em um país onde o desemprego estaria acima de 40% e o progresso em direção à União Europeia foi estancado pelas lutas étnicas. Muitas pessoas anseiam pelas certezas e a paz de uma Iugoslávia unida.

“Todos os políticos deveriam ser enviados para Goli Otok!”, diz Milan Bosanac, 79 anos, um sérvio bósnio, referindo-se a um gulag da era comunista em uma ilha deserta no Adriático. “Tudo vai piorar. Enquanto [o ditador comunista] Tito vivia, tudo era ótimo, todo mundo tinha emprego. Hoje há centenas de milhares de desempregados, e nada para os velhos.”

A vida de Bosanac foi afetada pelo conflito desde a infância: na Segunda Guerra Mundial, seus parentes eram partisans iugoslavos comunistas que combateram os nazistas e seus aliados. Depois que a guerra irrompeu na região, em 1941, seu pai morreu no campo de concentração de Jasenovac, dirigido pelos croatas, e a família fugiu para as montanhas Kozara, no nordeste da Bósnia. Um dia ele se perdeu dos demais na neve e foi resgatado por uma mulher que cuidou dele durante vários meses.

Andando com uma bengala, Bosanac vive em seu apartamento em Grbavica, subúrbio de Sarajevo que já foi principalmente sérvio, mas hoje é dominado por muçulmanos. A família morou no bairro durante a guerra, refugiando-se no porão quando a luta se intensificava, e em um período teve de provar sua nacionalidade para soldados sérvios fanáticos. Eles partiram para casas no sul da Bósnia e em Montenegro quando o bairro “mudou de mãos” depois da guerra, mas, diz a sobrinha-neta de Bosanac, Stasha, voltaram após alguns anos “para sermos estranhos em nossa cidade, em vez de estranhos em um lugar estranho”.

Sua filha, nascida quase dez anos após o fim da guerra, também foi afetada. No ano passado as crianças muçulmanas de sua escola se recusaram a brincar com ela por algum tempo durante os preparativos do primeiro censo do pós-guerra na Bósnia, enquanto a retórica nacionalista incentivava as crianças, assim como os adultos, a se identificarem como muçulmanos, sérvios ou croatas.

O slogan dos acontecimentos da semana passada foi “Um século de paz depois de um século de guerra”. Há poucos países aos quais isso se enquadra melhor, e mesmo para as pessoas decididas a preservar o passado da Bósnia o aniversário é uma lembrança dolorosa.

“A Ponte Latina é um símbolo da guerra, e sinto muito que Sarajevo seja vista como um símbolo da guerra”, diz Mirzah Foco, uma autoridade muçulmana na comissão da Bósnia para preservação do patrimônio nacional, às margens de uma conferência em Sarajevo. “Eu estive no exército e quero esquecer tudo o que aconteceu. Acredite em mim, foi um pesadelo.”

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