A incoerência de Eduardo Leite ao propor um ‘Plano Marshall’ para o Rio Grande do Sul

Um pacto social e de plano de reconstrução como este requer que a sociedade derrote o mercado e tome as rédeas de um novo projeto de desenvolvimento

O presidente Lula e o governador do RS, Eduardo Leite, em 2 de maio de 2024. Foto: Ricardo Stuckert/PR

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Em meio à devastação provocada no Rio Grande do Sul por mais um evento climático extremo, o governador gaúcho Eduardo Leite, do PSDB, afirma que seu estado precisará de um “Plano Marshall” de reconstrução. A declaração de Leite merece ser melhor explorada, uma vez que ele é um expoente da renovação de lideranças da direita democrática brasileira e que seu campo político atua sistematicamente para bloquear iniciativas deste tipo em nossa democracia. 

Primeiro, é preciso entender que o Plano Marshall não se resume apenas a um conjunto de investimentos e obras financiados pelos Estados Unidos para reconstruir a indústria e a infraestrutura europeias após a Segunda Guerra. Na verdade, o Plano Marshall foi um componente crucial de um processo mais abrangente: a criação do Estado de bem-estar social na Europa.

O Estado de bem-estar social foi um pacto social amplo, global, baseado fundamentalmente em diminuir os lucros do capital e investir a maior parte dos ganhos da economia na maioria da população europeia, sobretudo na classe trabalhadora. O Plano Marshall em si viabilizou obras em infraestrutura elétrica, de transportes, comunicação, mas também em saúde, educação e assistência social, que formam a rede de proteção social fundamental para dar liga ao pacto social pós-guerra na Europa. 

O próprio papel do financiamento estadunidense é apenas parte da história: ainda mais importante foi o estabelecimento de sistemas de tributação progressiva nos países europeus, fazendo com que os mais ricos e as empresas pagassem grande parte dos custos do pacto social. Nesse processo, o papel do Estado na indução econômica e o fortalecimento dos sindicatos como atores coletivos foi decisivo para garantir a unidade nacional em torno dos objetivos de desenvolvimento e proteção social. O resultado não foi apenas a reconstrução física das nações europeias, mas a constituição de sociedades com os menores índices de desigualdade da histórica do capitalismo. 

Todo esse pacto foi destruído a partir dos anos 1970, por uma série de fatores estruturais do capitalismo, bem como pela emergência de uma nova hegemonia política, o neoliberalismo, cujo o partido de Eduardo Leite é um dos representantes no Brasil. Para além das questões econômicas que atravessam o projeto neoliberal, seu coração está em legitimar e naturalizar as desigualdades de todo tipo, transferindo do público para o privado a virtude de combater injustiças e iniquidades, ou seja, conferindo ao mercado o papel central na estruturação e coesão de um novo pacto social.

O resultado do neoliberalismo em todo o planeta foi a explosão das desigualdades, expressas atualmente em duas dimensões. A primeira é a óbvia disparidade de renda, onde o 1% mais rico concentra dois terços da riqueza gerada em todo o mundo, conforme aponta o relatório da Oxfam sobre a desigualdade global.


A segunda dimensão é justamente a emergência climática. É impossível ignorar a intensificação dos processos de desenvolvimento predatório em relação à natureza nas últimas décadas e a incapacidade global de coordenar esforços para mitigar os efeitos prejudiciais da atividade humana sobre o planeta sem reconhecer a centralidade da competição neoliberal e das múltiplas desigualdades que essa hegemonia promove. Essas desigualdades destroem os laços sociais internos dos países e a solidariedade entre as nações.

Hoje, graças aos numerosos modelos científicos, temos a certeza de que os eventos climáticos extremos aumentarão em frequência e intensidade, como testemunhamos no Rio Grande do Sul, um estado que já havia enfrentado uma situação semelhante em setembro de 2023, quando Eduardo Leite, já governador na época, pouco fez para mobilizar a sociedade do seu estado para prevenir ou mitigar os efeitos de futuros eventos climáticos extremos. Essa inação é coerente com seu projeto político, no qual o Estado não desempenha o papel de organizar a economia. No jogo do mercado, infelizmente, a tragédia que assola a população gaúcha é considerada lance normal.

A incoerência de Leite aparece no seu apelo por um plano Marshall, uma vez que esse tipo de pacto social e de plano de reconstrução requer que a sociedade derrote o mercado e tome as rédeas de um novo projeto de desenvolvimento. Esse projeto deve ser baseado no combate às desigualdades de renda (com uma efetiva taxação de super ricos) e no combate às desigualdades climáticas, através de uma poderosa onda de investimentos nas periferias das grandes e médias cidades e na transição energética justa, com geração de empregos e combate à pobreza, no lugar das fórmulas mercantis de enfrentamento as mudanças climáticas, que só servem para gerar mais lucros e enxugar o gelo – até que venha mais um desastre. 

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4 comentários

Thais Reis Oliveira 7 de maio de 2024 10h45
Sebastião, me manda por favor um e-mail? thais@cartacapital.com.br
Sebastião de Amorim 6 de maio de 2024 19h17
Como faço para enviar artigos para avaliação de vocês, na CCapital? Sou professor de Estatística na Unicamp, Recém aposentado. Andei publicando no Estadão, inclusive um que, segundo eles me informaram, foi um dos que geraram mais cartas 13x1 favorável. Por um tempo ajudei lá como pautador. Queria um meio mais progressista. Sou assinante da CCapital. Uma referência de artigo meu: Ensino Básico, silenciosa tragédia nacional 20/04/2007. Acho que posso dar uma mãozinha ao excelente trabalho de vocês, principalmente em parceria com José Cechin, ex Ministro do FHC. Andamos colaborando em diversos temas.
joao medeiros 7 de maio de 2024 14h13
Precisamos de ideias inovadoras, entre elas o uso de movimentos sociais para recuperar e estabelecer novos critérios de ocupação de áreas rurais degradadas e com riscos ambientais. Implantando projetos de desenvolvimento sustentável econômica, social e ambiental, através de destilação de áreas para a reforma agrária, com o compromisso dos assentados rurais, trabalhem e sejam remunerados por seus serviço empregado na recuperação de nascentes e reflorestamento destes assentamentos.
Georges C. Costaridis 7 de maio de 2024 15h24
Se não conseguimos nem ter um povo que rechace políticos que jamais mereçam ser chamados de representantes imagine termos uma sociedade que tome as rédeas de um novo projeto de desenvolvimento.Em tempo: quanto do maroto orçamento paroquial de relator nossos quadrilheiros do congresso abriram mão para atender a essa parcela que lhes garante a vida boa? Zero , não é?

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