A Lei de Segurança Nacional e os entulhos do autoritarismo

Reformas pontuais na LSN podem representar avanços, principalmente em suas tipificações penais vagas. Mas seu fundamento é em si um problema

A repressão aumentou a partir de 1968 (Foto: Flickr)

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A pandemia da Covid-19 se agrava de forma dramática, ceifando centenas de milhares de vidas e impactando toda a população. No lugar de agir para unir forças na superação deste quadro, a gestão federal intensificou o seu desgoverno e suas ameaças à democracia brasileira. Ao invés de combatermos um atroz inimigo comum, o coronavírus, o governo federal, no anseio de reinventar inimigos internos, mergulha cada vez mais profundamente nos escombros de nosso passado autoritário para resgatar um de seus piores entulhos: a Lei de Segurança Nacional (LSN).

A legislação representa uma das heranças mais diretas da ditadura militar no Brasil. Junto com a anistia a crimes como tortura e ocultação de cadáveres, o uso de ambas as normas representa uma transição que não foi realizada na redemocratização. Isto é, não ocorreu a responsabilização penal para as graves violações de direitos humanos, bem como persiste no ordenamento jurídico a afirmação de um inimigo interno, tornando inconclusa a garantia de liberdade de expressão e do pleno exercício da ação política no Brasil.

Afinal, a LSN se baseia numa concepção que vê nas diferentes opiniões e na oposição política uma ameaça permanente, tolhendo a organização de movimentos sociais, intelectuais críticos, artistas engajados e partidos políticos. A democracia precisa desse ativismo e pluralidade não apenas para constatar que direitos individuais fundamentais são garantidos, mas porque são tais atores, historicamente, os responsáveis pelo  avanço na conquista de direitos, constantemente bloqueados e ameaçados pela realidade brutal de desigualdade e violência estatal que impera no país.

A Lei mantém viva a lógica de um “inimigo interno”, sendo uma legislação de exceção e de suspensão de direitos que tem permitido a agentes estatais atacar adversários políticos por meio de seu uso arbitrário. A indefinição do “inimigo interno” é o que gera uma eficiência perversa à norma e às medidas repressivas adotadas.

Segundo levantamento da Conectas Direitos Humanos há um crescimento exponencial do uso da LSN no Brasil. Se olharmos para o período que vai de 2000 a 2020, foram 186 inquéritos instaurados com base na lei. Destes, são 7 em 2016, 5 em 2017, 19 em 2018, 26 em 2019, 46 em 2020. Ao incluirmos os casos de 2021, mais da metade do total terá ocorrido no governo de Jair Bolsonaro.


Neste contexto, reformas pontuais na LSN podem representar avanços, principalmente no tocante a suas tipificações penais vagas. No entanto, o seu fundamento é em si um problema, pois não pode haver em regimes democráticos “inimigos internos”, dado que a pluralidade política é justamente o melhor remédio contra o autoritarismo. Pelo contrário, uma suposta defesa que a LSN faria das instituições se revela como uma falácia diante de uma história marcada por golpes contra a democracia, repressão a movimentos políticos e altos índices de injustiça social e racismo institucional. Já passou da hora das instituições e forças democráticas assumirem sua responsabilidade na eliminação dos entulhos autoritários que persistem na legislação brasileira. Afinal, diante da experiência vivida até aqui, de que serviu – e a quem serviu – até hoje a implementação da Lei de Segurança Nacional em nosso país?

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