A utopia serve para nos fazer caminhar, sempre

Golpe de 1964 tinha como mote afastar corruptos e subversivos. Em 89, Collor era o bastião da moralidade capaz de acabar com a corrupção

Bolsonaristas não absorveram a memória coletiva dos anos de autoritarismo

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Por esses dias, uma ressaca política passa a rondar muitos corações e mentes, por sentirem que uma distopia vai se alastrando, que uma sombra vai nos encobrindo e nos impedindo de enxergar os mecanismos de dominação aos quais estamos subordinados.

O atributo ficcional da distopia vai se tornando realizável à medida em que algo e/ou alguém é capaz de catalisar as privações e opressões e a elas dar vazão, invertendo o sinal de emancipação pelo de controle.

Percorrendo caminhos não convencionais, a candidatura de Bolsonaro não necessitou de amplas coligações partidárias, bem como do tempo de propaganda eleitoral na TV e rádio (HGPE) ou de uma sólida e capilarizada estrutura partidária. Fez um partido à sua imagem e semelhança e usou as redes sociais digitais, especialmente o WhatsApp, como uma tecnologia de poder com um alto grau de sofisticação.

Ou seja, por mais que os apoiadores orgânicos tenham se engajado no compartilhamento de informações positivas do candidato e de negativas dos concorrentes, houve uma organização econômica e simbólica capaz de alimentar essa vociferação. Não são poucos os relatos de disseminação de fake news e de abuso do poder econômico.

A ascensão dessa candidatura distópica foi gradativa, mas constante. E sem querer esgotar esse assunto, que é complexo e multicausal (vamos demorar algum tempo para entendê-la em sua completude), trago aqui algumas movimentações e adesões importantes.

Primeiro vieram os convictos, chamados pejorativamente de bolsominions. Jovens, em sua maioria, já nasceram sob os governos do PT, e sem o contraponto de outra ideologia democrática a conduzir um projeto nacional, encontraram na candidatura de Bolsonaro uma forma de se manifestarem publicamente no espectro da extrema direita em um combo anti-establishment “contra tudo que está aí”.


Esses convictos não absorveram a memória coletiva dos anos de autoritarismo, em parte por não os terem vivenciado, em parte pelo nosso fracasso institucional de tratar a censura e a tortura como uma prática sistemática do Estado brasileiro pelo menos a partir da assinatura do AI-5, naquilo que Alfred Stepan chamou de autonomização do aparelho de segurança.

Nesse vácuo de uma história experienciada, emerge uma produção simbólica impregnada de revisionismos e ancorada em uma construção de imagem capaz de articular a linguagem do marketing político com elementos da cultura pop, resultando em conteúdos com um grande potencial de circulação, de viralização.

A rebeldia dos jovens aficionados por Bolsonaro não se transformou em um comportamento político de mudança na radicalidade que nossa desigualdade estrutural carece, mas de veneração da lei e da ordem, não como aspectos constitutivos do Estado de Direito, mas como salvacionismo, cabendo a um “ungido” a missão de acabar com a corrupção.

Já vimos esse filme! O golpe de 1964 tinha como motes afastar os corruptos e subversivos, arrumar a casa e depois devolver o poder aos civis. Collor em 1989 foi alçado a caçador de marajás, o bastião da moralidade capaz de eliminar a corrupção.

Mas eis que o tema corrupção ressurge, não por deixar de existir de tempos em tempos, mas porque, ao invés de buscarmos fortalecer cada vez mais os mecanismos de transparência, fiscalização e sanção na relação entre mercado e Estado, aceitamos que a corrupção aja como substrato para a construção de personalidades políticas midiatizadas.

Acrescentamos à cruzada contra a corrupção o aspecto militarista da candidatura de Bolsonaro, materializado em apoiadores (eles próprios, militares), e pelo devaneio de que armando a população a insegurança tenderia à diminuição.

Os problemas de segurança pública são evidentes aos nossos olhos e corpos, mas as soluções devem se pautar na institucionalização da defesa da vida e não no brutal caminho da “luta de todos contra todos”.

Assim, a renegação da política vai ganhando contornos mais sólidos com a adesão de outros segmentos sociais como revela a pesquisa da antropóloga Isabela Oliveira Kalil.

De parte do mercado financeiro, o apoio se baseia em uma decisão supostamente técnica pela melhora da economia, uma parceria que também não é nova, tendo em vista que em 1964 a elite econômica abandona as liberdades civis em nome da proteção coercitiva que os militares poderiam oferecer para a plena execução de seus negócios, sem a interferência de sindicatos, movimentos sociais, trabalhadores e trabalhadoras.

E para que não nos enganemos com o suposto nacionalismo da candidatura de Bolsonaro, cabe dizer que não se trata de uma defesa do patrimônio nacional e/ou da transformação do Brasil em um importante ator na governança política global, mas de um patriotismo rasteiro de exaltação ao verde e amarelo e seus ornamentos em um retorno a um passado supostamente harmônico e próspero.

Considero esse um dos fundamentos mais relevantes do pensamento conservador religioso, midiaticamente explorado por pastores influenciadores digitais, onde o patriotismo se torna a veste pública dos chamados “cidadãos de bem”, que se sentem legitimados a tutelar contra tudo e contra todos os valores da família, supostamente aviltados pela esquerda.

E o PT é o exemplo mais bem-acabado de como ser condescendente moralmente pode levar os fiéis e suas famílias à sujeição da corrupção da carne e ao afastamento desse passado nostálgico. Foi no governo do PT, segundo esses baluartes da moral, que as comportas se abriram para que as pautas de gênero, racismo, lgbtfobia, sobre descriminalização do aborto e das drogas ganhassem a esfera pública – e que bom!


O cerco distópico/despótico se fecha com essa brecha utópica, pois como nos diz Eduardo Galeano, parafraseando o cineasta argentino Fernando Birri, a utopia serve para nos fazer caminhar, sempre. Sem esmorecer.

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