Justiça

Além da Terra plana: o terraplanismo como método do governo Bolsonaro

Terraplanismo é uma ideologia. Terraplanismo na Educação, terraplanismo jurídico, terraplanismo econômico…

Bolsonaro e Moro. Foto: Alan Santos/PR
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A compreensão do que é terraplanismo vai além da crença de que o planeta tem formato de pizza. Representa, em última instância, a renúncia não apenas a consensos históricos construídos com base na ciência, mas a uma base racional a partir da qual o mundo é interpretado e decisões são tomadas.

O fenômeno pode ser resumido na lógica de que, se a versão for melhor e mais conveniente que os fatos, que se escolha a versão. Afinal, por meio de paranoias, devaneios e surrealismos é possível chegar a qualquer lugar: Terra plana, conspirações comunistas, movimentos anti-vacina, globalismo, negacionismo, vitimismo, kit gay, ideologia de gênero, balbúrdia em universidades, livros cujo problema é ter um monte de coisas escritas, prisão em segunda instância, reforma da Previdência, etc. Tudo isso entra no balaio do terraplanismo.

Dante Mantovani, atual presidente da Fundação Nacional das Artes, é talvez o maior exemplo de terraplanista-médio. Em suas redes, publicou que os “terrabolistas” são ótimos em fazer piadinhas sobre a delirante ideia de que a forma do planeta é esférica. Na sua Terra plana, os Beatles surgiram para implantar o comunismo e ouvir rock leva ao aborto e ao satanismo.

O orgulho preguiçoso temperado com uma empáfia anti-iluminista parece ser um traço comum dos que combatem os “esfericistas”. É como alguém que tem uma epifania, livra-se de seus grilhões e sai da caverna de Platão para se deparar com o mundo real. A diferença é que o caminho é exatamente o oposto, sendo a realidade deixada de lado em favor das sombras projetadas na parede.

Sergio Moro, Paulo Guedes e Abraham Weintraub, para enumerar alguns nomes do primeiro escalão do staff ministerial, não são muito diferentes de Mantovani. Todos, em suas respectivas áreas e com suas devidas particularidades, são terraplanistas, prendendo-se a realidades paralelas para legitimar suas ações – e olhe que ao menos Guedes e Moro são considerados da “ala técnica” do governo, em oposição à chamada ala ideológica, composta por olavistas lunáticos e conspiracionistas como Felipe Martins, Ernesto Araújo e o próprio Weintraub.

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sa/AFP

O lavajatismo, por exemplo, é um grande terraplanismo jurídico. Para atingir determinados objetivos, não foram poupados sequer consensos civilizatórios do quilate da presunção de inocência e do devido processo legal, o feijão com arroz dos manuais de direito constitucional.

O encarceramento de Lula e a garantia da continuidade do butim iniciado pelo golpe de 2016 não cabiam nos esquemas legais de uma democracia. Para superar esse inconveniente, voltou-se aos padrões das monarquias absolutistas, onde a lei se confunde com o senso moral dos monarcas. Moro e Dallagnol, aiatolás da justiçagem lavajatista, não passam de eunucos intelectuais sem qualquer vergonha de se apresentar publicamente como templários em missão divina. Suas limitações, porém, serviram muito bem ao mercado, que viu em Bolsonaro o Uber da vez para suas intenções de permanecer esbulhando os fundos públicos.

Óbvio que a perspectiva de que a democracia liberal é fruto do capitalismo, e não o contrário, faz com que abandonemos a conclusão de que o lavajatismo é irracional; se o poder econômico é quem condiciona a aplicação da lei, não há nenhuma novidade nas truculências da Lava Jato, que, desse ponto de vista, sequer podem ser consideradas aberrações. O ponto fora da curva só existe se insistirmos em nos situar sob a minúscula gaiola jurídica e seus limitados horizontes, como bem assinalou Marx em sua crítica ao Programa de Gotha. Filigranas diante de um contexto maior, segundo, muito acertadamente, concluiu o profeta Dallagnol em uma das mensagens da Vaza Jato.

A cartilha de Guedes e Weintraub é a mesma de Moro. No livro “Previdência: o debate desonesto”, Eduardo Fagnani demonstra como Guedes faz uso de uma economia baseada em mapas astrais, agarrando-se em falácias para defender, por exemplo, que aposentados que ganham assustadores R$ 2.231,00 são ricos e privilegiados, de acordo com a exposição de motivos da própria PEC nº 6/2019. Para ele, acionistas de bancos que abocanham bilhões a título de lucros e dividendos sem que um centavo seja tributado são aliens ou anjos que povoam o domo da Terra chata.

Weintraub não fica atrás. O ministro da educação, que possui uma enciclopédia de pérolas a despeito de estar há menos de um ano na pasta, já afirmou que as universidades federais possuem plantações de maconha e laboratórios produtores de drogas sintéticas. Disse também que Paulo Freire, que esteve no exílio de 1964 a 1980 e cuja única e curta experiência de gestão na educação se deu no município de São Paulo sob o governo de Luiza Erundina (1989-1992), seria o responsável pelo fracasso da educação brasileira. No último dia 07, afirmou ainda que o “kit gay” – que nunca existiu e muito menos chegou a ser distribuído nas escolas – estaria dando lugar a um programa de incentivo à leitura familiar lançado pelo MEC.

O Ministro da Educação Abraham Weintraub. Foto: Evaristo Sa/AFP

Por mais que seja tentador achar que tudo se trata de estupidez, o que existe de fato é uma dinâmica que tem sim sua razão e que serve muito bem aos fins por ela traçados. É aí que o terraplanismo deixa de ser piada e pode ser encarado como um método.

A racionalidade científica e o respeito a marcos civilizatórios não dançam no mesmo passo de quem tanto garantiu que a Seguridade Social fosse implodida como que Lula fosse preso. Tampouco está no ritmo de quem nega a precisão matemática dos satélites que indicam o aumento de queimadas na Amazônia, pois isso dificulta a expansão da fronteira agrícola que, por sua vez, acontece via o extermínio de lideranças campesinas, indígenas e comunidades originárias, alvos preferenciais do bolsonarismo, hostil a qualquer coisa que possa ser uma pedra no sapato do lucro e da acumulação predatória.

Se puxarmos o fio desse novelo, é ele, o capital, que encontraremos no final, com toda a sua anarquia destrutiva disposta a pegar carona nas formas que melhor correspondam aos níveis do quanto se quer acumular no momento, mesmo que à custa de vidas, do meio ambiente, de postulados científicos e de conquistas civilizatórias. As batalhas imediatas são, claro, contra o bolsonarismo e suas expressões terraplanistas de última hora. Mas a guerra real é pela superação do modo de produção capitalista e suas sociabilidades. É esse o horizonte que não podemos perder de vista.

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