As fotografias que nunca existiram

Como Jaar, fiquei aqui pensando nas fotografias que não tenho

Apoie Siga-nos no

Foi uma sala escura instalada no Sesc Fábrica, em São Paulo, que me despertou para esta crônica. A ideia do artista chileno Alfredo Jaar de explicar em texto, em mínimos detalhes, fotografias que não existem, foi tudo.

Herdei dos meus pais um baú de fotografias em preto e branco que retratam nosso cotidiano nos anos 1950, 60 e 70, principalmente. Depois disso, vieram as fotografias coloridas que hoje, com o passar do tempo, estão mais para a sépia do que para as cores do arco-íris.

A minha ideia era catalogar uma a uma, por data, por assunto. Mas desisti. Achei melhor ficarem ali espalhadas aleatoriamente, criando uma surpresa a cada uma que puxamos lá de dentro.

Mas, como Jaar, fiquei aqui pensando nas fotografias que não tenho.

Minha mãe com uma blusa branca de renda, uma saia preta de brim e alpargatas 7 Vidas nos pés, grávida de mim. Ela, ali de pé no alpendre da nossa casa, recém-inaugurada num bairro ainda com poucas casas e calçada com paralelepípedos bem desenhados.

Junto a ela, minha irmã, com cinco anos, usando um vestido de organdi, sapatos e meias brancas, um laço enorme na cabeça. O meu irmão de dois anos segurando na saia dela e com um dedo na boca, desconfiado que deixaria de ser, em breve, o filho caçulinha.


Joli, um cachorrinho branco, olhando para o lado. O meu pai não o convenceu em olhar para sua Rolleiflex, para o passarinho, na hora do clic.

Imaginei também uma fotografia na boleia de um caminhão de pedras, eu lá em cima, rumo a Salvador, na Bahia, onde o carnaval me esperava. Tênis Bamba surrado nos pés, calça Lee, camiseta branca encardida, manchada de caju, e um boné escrito Jeep na cabeça. Meus cabelos, juba de leão, esvoaçados pelo vento que vinha enquanto o caminhão rasgava a estrada. Segurando firme na carroceria para não cair porque, morto, não iria mais atrás do trio elétrico.

A terceira fotografia que imaginei foi do meu pai se formando em engenheiro geógrafo na Universidade Federal de Minas Gerais. De pé, canudo nas mãos, ele usava um terno dois números acima do seu. Sapatos de bico fino, óculos de aro grosso e os cabelos alinhados pela brilhantina Myurgia.

Pensei em outras fotografias: a minha irmã do meio fazendo bonito num concurso de bambolê, eu de goleiro no campinho de terra da Rua Grão Mogol, meu irmão deitado na cama lendo um livrinho do FBI, Julieta passando roupa, minhas pombas comendo milho no quintal. Minha irmã mais nova ao volante de sua Brasília verde.

Minha vó na janela de sua casa no bairro de Santa Teresa vendo o tempo passar. Meu tio deitado no chão com o corpo coberto de ketchup para impressionar minha tia que ameaçou ir embora. Mateus na porta do Mercado Central segurando um peru vivo na véspera do Natal. Meu primeiro amor sentado na praça Santa Rita me esperando chegar, por exemplo.

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

 

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.