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Blefe contra blefe

As mais recentes movimentações do Congresso Nacional são um indicativo de que o presidencialismo de coalização pode estar com os dias contados

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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O termo presidencialismo de coalizão, recorrente no debate público, foi cunhado em 1988 pelo cientista político Sérgio Abranches para caracterizar o frágil funcionamento de uma República com pouquíssimos partidos ideológicos e muitos fisiológicos. O modelo daí resultante é, desde a 6ª República, uma acrobacia de acordões empreendida pelos líderes do Poder Executivo.

As palavras “dinheiro” e “cargos” trocam em miúdos os termos da negociação entre os Poderes Executivo e Legislativo no País. União Brasil, Republicanos e Partido Progressista são três exemplos de partidos que receberam aceno favorável da frente ampla e que aprofundam a negociata para dilapidar os ministérios.

A aprovação em última hora da Medida Provisória de reestruturação ministerial não deixa dúvida de que o governo da frente ampla pagará caro para governar de forma republicana. Enquanto isso, o “centrão” e seu fisiologismo sequestram a parca democracia brasileira em troca de um resgate que, mesmo sendo pago, não garante a vida da refém.

O teatro todo é bastante indigno. Às vésperas de “caducar”, a MP 1154/23, que reestrutura a organização administrativa do Executivo e fixa o número de ministérios em 31, foi aprovada. O movimento impediu a volta ao cenário ministerial da gestão bolsonarista e a implosão do governo, que perderia 14 ministérios.

Ainda mais indigno é perceber o cinismo do Centrão, o maior interessado na ampliação dos cargos públicos e nas vias de acesso para mais desvios de verbas. Este bloco esperou, até o último instante, para votar contra a falência ministerial pela “bagatela” de 1,7 bilhão de ­reais – liberação recorde de emendas parlamentares neste ano.

Este cenário pode ser analisado sob um prisma mais ou menos negativo. Conduzem ao pessimismo a exposição da fragilidade do governo da frente ampla, o engessamento da possibilidade de governar e a reencenação da oposição antagônica entre presidente da Câmara e presidente da República (como quando Eduardo Cunha esteve contra Dilma Rousseff).

O que nos deixa uma ponta de otimismo é a exoneração de Alexsander Moreira, aliado de Arthur Lira (PP), da diretoria do MEC pelos escândalos de superfaturamento dos kits de robótica em Alagoas. O episódio volta a expor Lira como um administrador do orçamento secreto.

Desde que foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o orçamento secreto deixou de ser a ferramenta de manobra que permitia a Lira mover bases no Congresso. Infelizmente, porém, permaneceram em seu lugar as emendas vinculadas aos ministérios, o que explica, em parte, a adesão do centrão à nova configuração ministerial da frente ampla.

Vale ressaltar que, no mesmo período de 2022, durante a gestão bolsonarista, o governo já havia liberado mais do que o dobro do atual valor em emendas parlamentares. A gravidade é que, enquanto se encena o “blefe contra blefe” por dinheiro e cargos, as pautas mais urgentes para o futuro da humanidade são estraçalhadas pela Câmara e, provavelmente, seguirão o mesmo passo no Senado.

Refiro-me, em especial, ao Marco Temporal que institucionaliza o genocídio contra mais de 200 mil pessoas indígenas, a desidratação das competências e atribuições do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática e a flexibilização para que prossiga a destruição da Mata Atlântica.

É possível perceber, sem muito esforço, como, desde 2019, o Congresso tem aumentado sua participação na tomada de decisões do governo. Uma marca importante deste aumento são as chamadas Emendas Impositivas (aquelas contra as quais o governo não tem poder de veto, apenas controle sobre o fluxo).

O orçamento a ser executado em políticas públicas tem migrado do Executivo para o Legislativo – e, nesta retrospectiva de escalada de poder, talvez coubesse voltar a 2013. Essa transferência de poder passa a desenhar um cenário de possível “estiramento” da corda do presidencialismo no Brasil. Enquanto Lira chantageia o Executivo para votar as pautas de seu interesse, o custo da política aumenta e o prejuízo recai sobre os elos mais frágeis de sociedade: os povos originários e a natureza.

Com um Congresso cada vez mais conservador, as expectativas de mudança se reduzem. Até que o povo mostre sua insatisfação e sua força nas ruas, seguiremos a ver despontar no horizonte o fim de algo velho sem que o novo nasça. Sintomas mórbidos se anunciam. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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