Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

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Brasil: o coletivo-Gramsci

O otimismo da vontade não se pode confundir com a vontade do otimismo

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Ricardo Stuckert
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Em dezembro de 1929, Antonio Gramsci escrevia na prisão a que o fascismo italiano o confinara: “Não pensem que eu me sinto derrotado. Longe disso. Uma pessoa que está fortemente convencida da sua força moral, da sua energia e vontade e da necessária coerência entre fins e meios nunca se deixa abater por estados de espírito banais de otimismo ou de pessimismo. O meu estado de espírito é uma síntese desses dois sentimentos e transcende-os: a minha razão é pessimista, mas a minha vontade é otimista. Qualquer que seja a situação, eu imagino o pior que poderia acontecer e é isso que mobiliza toda a minha vontade e reservas de energia para evitar que isso aconteça e superar qualquer obstáculo”.

Imagino os democratas brasileiros neste momento como um Gramsci coletivo. Imagino-os a pensar com os seus botões o que pensava Gramsci em 1929 e a reagir do mesmo modo. Vejamos, pois, em que reside o pessimismo da razão e onde estão as reservas de energia para o otimismo da vontade. O pessimismo da razão decorre dos seguintes fatores. Primeiro, é difícil entender que, depois de quase 700 mil mortes por Covid, muitas delas evitáveis se não fosse a criminosa negligência do governo, do regresso massivo da fome que parecia erradicada, da degradação abissal do sistema científico e educativo, do desastre ambiental e humano intencionalmente produzido na Amazônia, do agravamento das desigualdades sociais e das condições de trabalho e dos sucessivos massacres da população das periferias, é ainda possível que 51 milhões votem em Bolsonaro. Tudo isso quando existia uma alternativa que trazia consigo a memória ainda recente de melhores tempos, memória também de uma exuberante presença protagonizada por alguém que regressava incólume do inferno a que injustamente o tinham condenado.

Segundo, apesar de tudo, o ciclo do retrocesso está longe de esgotado e revela que se colou à pele das práticas sociais como novo senso comum colonialista, racista e sexista. Consiste basicamente em virar vítimas contra vítimas, como modo de desviar a atenção dos verdadeiros opressores. Manipula eficazmente a religiosidade popular, que sempre foi o alento dos piores momentos e que, noutros tempos, em vez de paralisante e conformista, foi semente de inconformismo e resistência. Terceiro, apesar de o Brasil, pela sua enorme dimensão, ter dificuldade em imaginar que algum país ou movimento estrangeiro o possa afetar decisivamente, a verdade é que a extrema-direita global, que tem hoje nos EUA os seus maiores recursos financeiros e tecnológicos, vê em Bolsonaro instrumento estratégico para manter a visibilidade internacional e para facilitar o regresso de Donald Trump. Para a extrema-direita global, o segundo turno das eleições brasileiras são as primárias das eleições norte-americanas de 2024. Tenho chamado atenção para as atividades do Atlas Network, inicialmente financiado pelos irmãos Koch, magnatas reacionários dos EUA. Tem hoje 500 instituições parceiras em cem países para promover a sua ideologia ultraneoliberal. Foram importantes na recente rejeição do projeto constitucional do Chile.

Mas o Brasil, enquanto coletivo-Gramsci, não permite que nenhum desses fatores do pessimismo da razão afete o seu otimismo da vontade. Ele reside na imaginação do pior que pode acontecer se o ciclo atual não for prontamente estancado e na valorização do melhor que é possível detectar em plena avalanche reacionária. Sobre a imaginação do pior não preciso me deter, mas é importante ligar o pior às suas verdadeiras causas. É preciso mostrar que os grandes prosélitos da luta contra a corrupção são, talvez, os mais corruptos. É também preciso mostrar que a vitória de Bolsonaro visa eliminar a última instituição que até agora não conseguiu neutralizar, o STF. Seguirá o exemplo de Trump e de Viktor Orbán. Sobre a valorização do melhor, daquilo que no presente anuncia um futuro promissor, bastará ressaltar a força da contracorrente no primeiro turno. Lula, com enorme votação no primeiro turno, a eleição com mais de 1 milhão de votos do mais carismático e popular político depois do petista, Guilherme Boulos, a chegada ao Congresso de cinco lideranças indígenas (quase todas mulheres), a mais proeminente e promissora das quais é Sônia Guajajara,  a vitória de políticos e políticas que tanto contribuíram para dar dignidade e corpo ao espírito da democracia e da justiça, de Eduardo Suplicy a Luiza Erundina e Marina Silva, a disponibilidade para ampliar a inclusão e a justiça social às diferentes sexualidades ao eleger Duda Salabert e Erika Hilton.

O otimismo da vontade não se pode confundir com a vontade do otimismo. Tem de se traduzir em ação alegre, consistente e sem descanso na família, nos bares, no emprego, nas redes sociais, nas ruas e nas praças. Caso contrário, a indolência da vontade será a razão que falta ao pessimismo da razão. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Brasil: o coletivo-Gramsci “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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