Como não recordar que há um século os fascistas ascenderam ao poder na Itália e os nazistas na Alemanha?

Triste fim de um continente cujos crimes das guerras coloniais que ensanguentaram o Sul do mundo agora se voltam contra ele próprio

Evento do partido de extrema-direito alemão AfD, em 9 de junho de 2024. Foto: Ralf Hirschberger/AFP

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“[João] Cabral gosta muito de mim e me disse uma vez que, se o Brasil tivesse um poeta com meu talento e a sua disciplina, o país enfim teria um grande poeta” – Vinicius de Moraes

O que pensariam os diplomatas e poetas Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto dos resultados das eleições para o Parlamento Europeu, que se realizaram no fim de semana passado?

Como interpretariam a vitória da extrema-direita nos três principais países do Velho Continente, em que os nazi-fascistas elegeram as maiores bancadas na França e na Itália, tornando-se a segunda força política no principal país da União Europeia, a Alemanha?

Como não recordar que há um século os fascistas ascenderam ao poder na Itália, em 1922, e os nazistas, na Alemanha, em 1933?

Uma capa recente da prestigiosa revista alemã Der Spiegel (O Espelho), de 18 de maio do corrente ano, indaga: “Nada aprenderam?”

Como responder a essa pergunta?


Talvez, buscando as raízes do desastre, tão incrivelmente similares ontem e hoje.

Em ambos os contextos, o atual e o da década de 20 do século passado, as populações estavam deprimidas socioeconomicamente, de tal sorte que mal podiam prover ao próprio sustento – em meio à abundância dos opulentos.

Foram empobrecidas, mediante a participação ativa dos Estados na descomunal concentração de renda.

De tal sorte, o eleitorado deixou de depositar sua confiança na política tradicional, buscando alternativa na extrema-direita, ainda que arriscada, pois não lhe deixaram outra opção.

Vale notar que essa concentração inaudita de renda, em prejuízo dos trabalhadores, ocorreu, em primeiro lugar – e como regra – a partir da geopolítica internacional.

A potência hegemônica decadente, os Estados Unidos da América, defasada tecnologicamente, já não podia concorrer com as rivais Rússia e China, a primeira com a supremacia tecnológica militar, a segunda, com a civil.

Dessa forma, decidiu acuar a Rússia, mediante golpe de estado na Ucrânia, em 2014, na esteira do qual teríamos outros por eles patrocinados, no Haiti, em Honduras, no Paraguai e, finalmente, no Brasil, em 2016.

Ao lado disso, EUA e aliados, que tanto estufam o peito ao condenar o que qualificam de terrorismo, praticaram ato terrorista e explodiram o principal gasoduto que ligava a Rússia à Europa Ocidental, o “Nord Stream 2”, pelo qual os países europeus, importadores líquidos de gás e petróleo, recebiam os combustíveis de que necessitavam.

Consequentemente, a Europa passou a importar gás e petróleo dos EUA, a um custo muito superior àquele que a Rússia praticava, incrementando, dessa forma, os custos de produção de uma indústria combalida pela defasagem tecnológica e com possibilidades cada vez menores de vendas, tendo em vista a retirada de direitos trabalhistas, a precarização do trabalho e a consequente redução do poder de compra em toda a Europa.

Pior, as contas de consumo doméstico de energia saltaram de uma tal forma que muitas famílias, não podendo mais arcar com os custos de calefação, tiveram de dispor de seus imóveis, em benefício de locais menores e com custos mais reduzidos de energia.

Tudo isso em um cenário de desemprego massivo e cortes de benefícios salariais e sociais.

Convém notar, ainda no front externo, que a União Europeia jogou papel essencial tanto no arrocho salarial e trabalhista quanto em atrelar os interesses continentais aos dos EUA, o que a extrema-direita soube bem explorar, assegurando ao eleitorado que só ela seria capaz de resgatar a soberania do continente e das nações que o integram.


Ainda pior, os Estados da UE passaram a alocar quantias vultosas para que a Ucrânia mantivesse uma guerra que todos sabem ser impossível de ser ganha, mas que traz lucros extraordinários para o lobby militar dos EUA, o maior exportador de armas do planeta, e da França, o segundo, inglório, lugar.

Vale notar que Macron, presidente da França, ao mesmo tempo em que derramava uma chuva de euros na indústria de armamentos, sob a cortina de fumaça da ajuda militar à Ucrânia, impôs mais dois anos de trabalho às trabalhadoras e aos trabalhadores franceses, para isso usando de um expediente ditatorial, um artigo de exceção da Constituição francesa, que lhe permitiu “aprovar” a reforma sem a real aprovação parlamentar, em um país que ainda se quer uma democracia…

Convém notar que para fechar o torniquete em torno da Europa, os EUA a envolveram de tal forma nos conflitos por eles gerados no Oriente Médio, de maneira que não lhes restasse outra saída senão a importação de petróleo e gás dos próprios EUA.

Algo muito semelhante ao que fizeram no Brasil após o golpe de 2016, em que o País passou a exportar óleo cru e importá-lo refinado dos EUA, com enorme ágio e capacidade ociosa das refinarias nacionais que beirou os 50%.

Entretanto, se a manipulação da diplomacia europeia tivesse se restringido, no Oriente Médio, a essa manobra deletéria o desastre humano não teria sido total.

O cataclismo moral do continente, porém, ocorreria dentro dos salões acarpetados da própria ONU, em Nova York, em que as nações do continente, muitas das quais, como a França, reivindicam ser pátria dos direitos humanos, abstiveram- se de reconhecer o Estado da Palestina, que recebeu, então, o reconhecimento de mais de 170 países daquela Organização.

Ainda mais grave, isso se deu em meio ao maior genocídio de que se tem notícia, desde a famigerada Segunda Guerra Mundial, tendo as vítimas de ontem tornado-se os algozes de hoje.

Triste fim de um continente cujos crimes das guerras coloniais que ensanguentaram o Sul do mundo agora se voltam contra ele próprio, fazendo-o, então, escravo de si próprio e de seu destino.

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