Como um zagueiro pode ensinar a defesa criminal?

No universo jurídico, o encantamento da sociedade por quem realiza os ataques no processo penal também se encontra presente.

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Em um passado distante já fomos “noventa milhões em ação” e, no curso do chamado “milagre econômico” promovido pela ditadura civil-militar, a população bradava “Pra frente, Brasil!” empolgada pela seleção tida como a melhor do século. O futebol mudou com o transcurso de quase meia centúria. Todavia, mesmo diante de diversas modificações não foi arrefecida preferência pelos jogadores ofensivos. Os apaixonados exigem deles a técnica, o talento e a capacidade de marcar tentos. Por outro lado, os defensores, pela função exercida em campo, não conseguem angariar o fascínio e a idolatria.

No universo jurídico, o encantamento da sociedade por quem realiza os ataques no processo penal também se encontra presente, sendo certo que não é raro a defesa ser questionada por querer impedir a vitória contra a impunidade.

A partir da recente aposentadoria de um zagueiro, busca-se estabelecer uma relação entre o futebol e o processo penal. O referencial teórico, que sucintamente será apresentado, poderá afastar qualquer tentativa de considerar heterodoxa essa aproximação de fenômenos tão distintos.

Em uma quadra histórica marcada por um tacanho conservadorismo que repudia o pensamento transdisciplinar, é necessário se posicionar contrariamente a essa tentativa de esvaziamento da crítica. Para os fins deste texto, o recurso à história cultural se mostra, portanto, relevante, já que Joahan Huizinga aponta para a possibilidade de o fenômeno processual ser examinado pelo prisma lúdico. Piero Calamandrei também trilhou por esta via e defendeu o processo como um jogo. Mais recentemente, Alexandre Morais da Rosa, o nosso Nelson Rodrigues do processo penal, com o aporte da teoria dos jogos, trouxe uma nova forma de compreender o processo a partir do agir de cada um dos atores jurídicos.

 

Mas, qual seria a relação entre esses saberes e o título deste texto? Uma pausa se faz necessária, pois movido pela paixão rubro-negra se busca inspiração no agora aposentado zagueiro Juan Silveira dos Santos. Precoce talento promovido ao time profissional da Gávea, rodou o mundo e decidiu encerrar sua carreira no time de coração. Conquistou títulos e foi o responsável por levantar a taça do 35º campeonato carioca. Ao lado de Júnior Baiano, foi o zagueiro que mais marcou gols com o manto sagrado.


Muito embora não valorizado como outros nomes revelados pelo Mais Querido do Brasil e que atuavam no ataque, Juan, o zagueiro escolhido como inspiração deste texto, demonstrou a sua importância nos diversos esquemas táticos elaborados pelos “professores” da beira do campo. Da mesma forma, é chegado o momento de reconhecer a relevância da defesa do Texto Constitucional mesmo que isso implique na insatisfação dos anseios vingativos existentes na autoritária sociedade brasileira e, se possível, avançar como forma de assegurar a vitória processual.

É oportuno frisar que o conjunto de conquistas civilizatórias que atende pelo nome de direitos e garantias fundamentais jamais podem ser desprezado, sendo certo que, na seara processual penal, o estado de inocência possui uma grandeza ímpar. Contudo, quer seja como resultado de uma equivocada teoria geral do processo, quer seja pela influência de juízos sumários condenatórios promovidos pelos diversos canais midiáticos, cotidianamente são aferidas gravíssimas vulnerações ao citado estado.

Defender encarniçadamente esse direito fundamental multifacetado é dever de todo ator jurídico verdadeiramente comprometido com o Estado Constitucional e isso deveria ser independentemente da posição assumida no processo. Ao defensor – público ou privado – se exige um maior rigor nessa função de resguardo por esse direito fundamental, vez que é o seu defendido que tem a liberdade ambulatória seriamente ameaçada.

Em razão da ausência de carga probatória defensiva, a primordial atuação do “beque” processual é impedir o gol do adversário.

Entretanto, em um cenário de deliberada sabotagem do projeto constitucional de persecução penal, mostra-se necessário pensar em outras formas de agir, já que o empate no jogo não tem se mostrado suficiente para garantir a liberdade.

Retorno, dessa forma, ao Juan, zagueiro de extrema qualidade, que sabia se posicionar em campo e, mesmo sendo parcimonioso no ataque e com as palavras, encabeçou a lista de goleadores da sua posição. À defesa processual deve ser exigido o pleno domínio técnico, a busca pelo aprimoramento contínuo e, de maneira pensada, pontual e refletida, proatividade no endosso de seus argumentos. É preciso elegância, nada de bicos para onde o nariz apontar, a defesa processual deverá, tal como os melhores zagueiros, deverá saber jogar de terno.

A falha estrutural do sistema prisional gerou, por parte do Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional. Mais do que a aplicação de um instituto jurídico alienígena, é preciso ter em mente que as cadeias representam um sério risco aos direitos mínimos do aprisionado.

Cada gol da defesa poderá representar um cárcere a menos e ainda que o defensor jamais se torne um artilheiro, não resta dúvida de que a comemoração valerá a pena. O gol de zagueiro também merece ser festejado.

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