Opinião

Conferências como a COP26 não deveriam incorporar outras formas de saber?

Como engajar a humanidade na discussão de sua própria sobrevivência sem lançar mão de diferentes linguagens?

Foto: William WEST / AFP
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“Vença a raiva com humildade, o mal com bondade, a avareza com generosidade, e a mentira com a verdade.”
Dhammapada.

No recente Anos de Chumbo e outros contos (Companhia das Letras), Chico Buarque dedica um capítulo a Clarice Lispector.

Interessante notar que Clarice é uma das autoras brasileiras mais lidas no exterior, apesar das dificuldades de tradução das sofisticadas reflexões da escritora, para outras línguas e culturas.

A herança judaica deve contribuir para compor o arquétipo literário que facilita sua compreensão internacional; a profundidade das reflexões enraízam-nos em nossos dramas e anseios humanos, sendo comuns a toda a humanidade; a magia do encontro de saberes russos, ucranianos, pernambucanos e cariocas, nas mãos de uma maga, resultou em uma literatura universal.

Cabe perguntar: conferências como a COP26, sobre as mudanças climáticas, que se realiza atualmente em Glasgow, não deveriam incorporar outras formas de saber? A literatura? A música? O cinema? As artes plásticas? Os esportes? Como engajar a humanidade na discussão de sua própria sobrevivência sem lançar mão de diferentes linguagens? Como nos livrarmos de amarras individuais e coletivas que nos conduzirão ao suicídio coletivo? Como evitar que outros Jaider Esbell tomem sobre si nossas culpas?

Em Clarice, uma vida que se conta (EDUSP), Nádia Batella Gotlib cita a autora, no conto dela Um Sopro de Vida: “…eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar…Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos.”

Naquela obra, coerentemente, Nádia Gotlib recorda: “Curiosamente, datam também de 1977 vários e intensos apelos de Clarice para ser ‘vista’ como uma ‘pessoa’, não como escritora ou profissional da escrita.”

Em Fenomelogia do Olhar, no volume Olhar (Companhia das Letras), Alfredo Bosi indicava: “Marxismo e psicanálise nos mostram, por vias diversas, um homem enredado nas malhas de sua classe, da sua cultura, da sua constelação familiar, da sua infância, da sua educação, do seu próprio corpo. O olhar, para ambos, não se parece nada com aquele foco de luz permanente e intangível que o pensamento clássico idealizou para a segurança da sua própria visão da natureza e da sociedade.”

Sem linguagens diversas, como obter a necessária participação de todos nas decisões que determinarão nosso destino comum?

No mesmo volume, Sergio Paulo Rouanet, em O Olhar Iluminista, discorre sobre o olhar para os iluministas e não apenas: “É emancipatório quando significa observar o poder, para desmascará-lo, não quando significa observar os homens, para submetê-los ao poder. É emancipatório quando significa olhar a natureza para estabelecer com ela uma relação fraterna, não quando significa olhá-la como objeto de exploração e domínio.”

Referindo-se à Enciclopédia, que reuniu o conjunto do pensamento Iluminista, Rouanet recorda que no verbete consagrado ao “olhar” (regard em Francês) o mesmo é definido como “ação do olho”. Agrega o autor: “Como verbo, olhar significa ‘fazer uso dos olhos’. O verbete acrescenta essa indicação preciosa: ‘on ne voit pas toujours ce qu’on regarde, mais on regarde toujours ce que l’on voit’. Não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.”

Com efeito, só vemos o que entendemos, olhamos todo o demais. Por isso, a importância de se buscar a linguagem adequada à cultura e à subjetividade de cada uma e cada um.

Contemporiza Rouanet: “Por um instante efêmero, o homem moderno teve a oportunidade de voltar à ágora, ao foro, reino meridiano da interação, do aparecer, da visibilidade recíproca, e foi de novo expulso para o oikos, para o mundo escuro da economia e do trabalho, da esfera privada, em que ele se tornou invisível para si mesmo e para os outros.”

Como sair da caverna? Quem nos impede? Por quê?

Em História Sincera da República (Editora Alfa-Omega), o médico e historiador Leôncio Basbaum aclara: “O entreguismo é aquela forma de ação político-econômica que consiste em alienar um país a outro mais forte militarmente, mais poderoso economicamente, entregando-lhe a direção da política econômica nacional. Por essa forma de atuação política, o país mais fraco fica subordinado ao mais forte, perde sua independência nacional, sua economia começa a girar em torno dos interesses exclusivos da nação mais forte. É uma auto-entrega ao imperialismo. Quem faz essa entrega? Só podem ser as classes dominantes, que detêm em suas mãos o poder do Estado. Em troca de que? Em troca da segurança nacional, à moda da ESG, isto é, em troca de uma garantia que as ajude se manterem no poder, para uma exploração tranquila das classes mais pobres. Mas é claro, essa auto-entrega não se faz abertamente, como o fez, por exemplo, Porto Rico, onde as classes dominantes, com medo do povo, buscaram a proteção, a ‘segurança nacional’ nas fraldas da bandeira norte-americana…na maioria das vezes essa entrega se faz sub-reptícia, para que o povo não tome conhecimento dela, senão muito tarde. Ou nunca. A legislação – e por vezes a própria Constituição – é modificada no sentido de que essa penetrarão, ou ocupação, se faça de forma legal. Facilita-se a alienação de empresas economicamente fundamentais, principalmente as de exploração de matérias-primas, ferro, chumbo, petróleo.”

Um último esclarecimento: não são os caminhoneiros os bolsonaristas – ao contrário do que a imprensa monopolista diz – mas os donos das transportadoras. Essa comprovação é visível: seus slogans e pinturas nos caminhões. São eles a peça chave para parar o país, como fizeram no Chile em 1973 e ensaiaram aqui, em setembro último. O que recebem em troca? Balanças fechadas; policiamento escasso ou inexistente; legislação trabalhista minguada; impunidade. Para os lucros, não é pouco.

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