Josué Medeiros
[email protected]Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB)
Decisões de EUA e Reino Unido criam um ambiente internacional que estimula e autoriza medidas destrutivas para a democracia
A principal tarefa política e histórica do governo Lula é reconstruir a democracia brasileira a partir de um projeto vigoroso de combate às desigualdades que possibilite uma derrota definitiva da extrema-direita.
Além dos desafios internos – grande parte deles ligada à força que o bolsonarismo conserva – o presidente precisa lidar com um cenário internacional muito mais adverso do que aquele de seus primeiros mandatos.
Quando analisamos a conjuntura internacional, de imediato pensamos na guerra da Ucrânia e no genocídio perpetrado por Israel em Gaza como evidências das dificuldades que a política global impõe aos governos nacionais. Sem dúvida, são elementos importantes, expressão de um mundo dominando pelo capitalismo neoliberal desregulamentado que aprofunda as desigualdades e estimula a violência como solução dos conflitos.
O problema, contudo, é mais grave e se manifesta nas políticas internas de praticamente todas as nações, com enormes repercussões internacionais. Dois exemplos recentes demonstram como as dinâmicas da extrema-direita se sobrassaem mesmo nas outrora consideradas democracias liberais sólidas dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Na Grã-Bretanha, o governo conservador do primeiro-ministro Rishi Sunak aprovou uma lei que libera seu governo a deportar para Ruanda – a mais de 6.500 quilômetros – qualquer imigrante ilegal que chegue ao seu território. Uma vez sancionado pelo Rei Charles, os voos de deportação devem começar em três a quatro meses.
Já nos Estados Unidos, o Senado aprovou o projeto que bane o TikTok do país, a menos que ele seja vendido pelos controladores chineses para cidadãos americanos. Esse banimento se soma às dezenas de proibições estaduais de livros sobre feminismo e antirracismo, entre outros conteúdos de promoção de direitos e combate às desigualdades considerados impróprios pela extrema-direita.
Nas duas grandes nações que já foram baluartes do liberalismo, tem restado às forças democráticas, além da resistência nas ruas, recorrer à Justiça. Mesmo quando o Judiciário enfrenta o retrocesso do ponto de vista legal, forçando ao recuo de certas medidas, o problema permanece, dada a força da extrema-direita na sociedade e nos parlamentos, alimentada pela crescente desigualdade que resulta do neoliberalismo.
Quando países como EUA e Reino Unido aprovam legislações desse tipo, cria-se um ambiente internacional que estimula e autoriza medidas de duas dimensões destrutivas para a democracia.
Primeiro, a cooperação internacional para a resolução dos problemas globais vai se fragilizando. O recrudescimento dos conflitos entre os EUA e a China, por exemplo, além de aumentar o risco de uma guerra com potencial destrutivo inédito, tende a inviabilizar iniciativas globais de enfrentamento à emergência climática e de regulação do capitalismo, tais como as urgentes propostas de taxação dos super-ricos e das políticas de transição energética justa.
Segundo, há um impulso de iniciativas de ataque e cancelamento de direitos que são fundamentais para a constituição não só de instituições democráticas, mas de laços sociais de solidariedade e cooperação, sem os quais não há democracia que resista.
Na Argentina, por exemplo, o ultraliberal Javier Milei leva a cabo um projeto de destruição de qualquer regulação estatal, cujos custos sociais vêm sendo criticados até mesmo pelo FMI.
Já no nosso país, movimentos como o “Invasão Zero” vêm se constituindo como verdadeiras milícias que atacam os movimentos sociais rurais e urbanos, os quilombolas e os povos indígenas, levando o Brasil a atingir, em 2023, o recorde de conflitos de terra, de acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra.
Não há outra fórmula para enfrentar todos esses desafios que não a mobilização social e a defesa dos direitos e da democracia. Felizmente, em meio a tantas notícias ruins, vemos exemplos animadores de ação coletiva. Nos EUA, estudantes vêm ocupando diversos campi universitários contra o apoio que seu país dá ao genocídio de Israel em Gaza. Na Argentina, o movimento de educação produziu uma marcha multitudinária histórica em defesa da universidade pública.
No Brasil, presenciamos a 20º Edição do Acampamento Terra Livre, protagonizado pelos movimentos indígenas em Brasília. Sob o lema “Nosso marco é ancestral”, os povos originários estão unificados na luta pelo seu direito à vida e à terra, demonstrando que garantir os direitos dos povos indígenas é condição para o fortalecimento da nossa democracia, para o enfrentamento concreto à emergência climática e para o combate às desigualdades sociais, econômicas, culturais, raciais e ambientais no Brasil.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
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