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Daniel Dourado
[email protected]Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.
A comissão não pode reverter a catástrofe, mas deve informar a população, para que os responsáveis sejam identificados e responsabilizados
Quando a CPI da Covid foi proposta no senado, escrevi que ela poderia criar as condições políticas para o impeachment de Jair Bolsonaro. Pouco mais de três meses depois, ainda não há indícios de que as condições para o afastamento do presidente estejam se formando, mas já se podem extrair alguns elementos políticos importantes da primeira fase da CPI, que encerrou a semana com o depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello.
A direção dada pelos senadores até agora indica que atores políticos já têm alguma clareza das causas do desastre humanitário brasileiro. A base das ações do governo Bolsonaro foi a aposta na absurda imunidade de rebanho por contágio. O boicote às vacinas e a invenção do kit-Covid se explicam a partir daí. O governo apostou que poderia economizar com vacinas e incentivou a população a se contaminar para adquirir imunidade natural, com a falsa segurança de que havia medicamentos para combater a doença. Sequelas e mortes decorrentes dessa estratégia foram conscientemente negligenciadas. As perguntas e as intervenções dos senadores Renan Calheiros, Omar Aziz, Randolfe Rodrigues e dos membros não-governistas da CPI mostram que esse entendimento já está razoavelmente consolidado.
Do lado governista, percebe-se uma tática em duas frentes.
De um lado, os senadores bolsonaristas continuam entoando os mantras do negacionismo, sobretudo repetindo o discurso do enganoso tratamento precoce. Essa, aliás, é a postura do próprio Bolsonaro, que nesta semana voltou a declarar publicamente ter começado mais uma vez a tomar cloroquina por conta própria pela mera suspeita de Covid, mesmo sabendo que o medicamento não funciona contra a doença.
Por outro lado, os ex-integrantes que continuam aliados do governo tentam se afastar dessa lógica política negacionista. Os depoimentos do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, do ex-secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, e dos ex-ministros Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello têm em comum a tentativa de blindar Bolsonaro. Buscam deixar toda a responsabilidade pela gestão da pandemia na conta de Pazuello, papel que o general da ativa aparentemente está disposto a desempenhar. Mas a necessidade de depor formalmente na CPI colocou esses governistas na situação de se verem obrigados a se distanciar do discurso do presidente. Perceberam que não têm condição de bancar publicamente a estratégia da imunidade de rebanho ou o tratamento precoce. Pelo contrário, defenderam as vacinas, o uso de máscaras e até o distanciamento físico. Chegaram ao ponto de dar declarações claramente falsas e inusitadas, como o ex-chanceler afirmar que jamais houve postura diplomática negativa em relação à China ou o ex-ministro ter atribuído a um suposto hacker o vazamento do aplicativo do ministério da Saúde que foi lançado por ele próprio em Manaus.
Essa postura dos depoentes indica que a CPI está indo por um caminho interessante. Junte-se a isso as contradições manifestas com os depoimentos de Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e, principalmente, do executivo da Pfizer, Carlos Murillo. Tem-se aí um saldo político ruim para o governo. Os seus aliados distorcem os fatos e mentem para defender Bolsonaro, mas acabam demonstrando que as ações e omissões do presidente não têm defesa.
Infelizmente, a catástrofe sanitária já aconteceu. A CPI não tem como reverter as perdas irreparáveis e o enorme impacto da pandemia no país. O que se espera é que a comissão cumpra sua missão de informar a população sobre o que aconteceu, para que os responsáveis sejam identificados e respondam pelo que fizeram.
Se não é possível saber quando haverá uma próxima pandemia, é obrigação da sociedade brasileira garantir que um Bolsonaro nunca mais se repita.
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
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