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Diante de catástrofes

Certas medidas de exceção são legítimas em situações de calamidade. Não para ampliar os poderes do Estado, mas para assegurar direitos

Registro do bairro Menino Deus, em Porto Alegre (RS), em 9 de maio de 2024. Foto: Anselmo Cunha/AFP
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O desastre sem precedentes no Rio Grande do Sul nos leva a consignar que, em situações extraordinárias como esta, determinadas medidas de exceção são legítimas. A excepcionalidade provocada por fortes chuvas, com grandes áreas inundadas na maioria dos municípios gaúchos, exige medidas efetivas em nome da vida das pessoas e da saúde pública.

O caráter absolutamente emergencial da calamidade impõe a adoção de diversas medidas de enfrentamento. No plano jurídico, estamos diante de uma situação de caráter extraordinário, em face da qual a ordem jurídica pode e deve oferecer respostas específicas, próprias da exceção.

O constitucionalismo democrático prevê que, em situações emergenciais como estas, o Estado tenha seus poderes momentaneamente redefinidos e, em algumas situações, ampliados. É cabível, inclusive, a suspensão parcial de direitos para atender às momentâneas exigências. Ou seja, a exceção visa tutelar direitos, tais como a vida e a saúde, e jamais constituir-se em benesse ao poder político.

Restrições à liberdade e à propriedade podem se justificar, assim como limitações à circulação das pessoas podem se justificar. Do mesmo modo, a fiscalização estatal pode ser mitigada, sem que isso implique omissão ilícita do Estado. A situação extraordinária faz preponderar o direito à vida e à saúde sobre o dever do Estado de cobrar tributos e promover o controle sobre a circulação de bens que, em circunstâncias normais, devem submeter-se ao ordinário regramento sanitário e tributário.

Em circunstâncias como estas, as contratações públicas também podem ser concretizadas sem o procedimento comum de licitações, assim como diversas outras providências de cunho burocrático e procedimentais devem ser dispensadas. Sob a perspectiva da responsabilidade dos Poderes Públicos, não há que se falar em dever de indenizar por danos ocasionados aos particulares em razão do enfrentamento do desastre. Por outro lado, danos acarretados em razão de falhas na adoção de medidas preventivas, exigíveis do Estado, podem gerar o dever estatal de indenizar os lesados.

Outro relevante aspecto que se coloca neste tema é com relação ao enfrentamento das fake news. A desinformação é severamente perturbadora do enfrentamento da situação de emergência ao criar uma cortina de fumaça sobre a realidade, bem como sobre ações prioritárias, além de descredibilizar as instituições estatais.

As fake news, em si mesmas, não são crimes no Brasil. Inexiste lei nesse sentido, razão pela qual não se pode realizar qualquer pretensão de criminalização da disseminação de desinformações, ainda que em momentos de crise. Por outro lado, consoante esclareceu o professor ­Juarez Tavares, as conse­quências delas podem ser criminalizadas. As fake news são o instrumento para realizar um crime. Ela em si não é tipificada, mas ela pode ser instrumento, veículo pelo qual se comete um crime.

Conforme sua precisa análise, espalhar fake news não possui tipificação penal, mas o autor deve responder por suas consequências. Conforme o exemplo dado pelo professor, caso alguém gere uma desinformação provocadora de uma situação impeditiva de socorro, o mesmo deve responder pelo crime de omissão de socorro por comissão, que é a conse­quência do ato que ele fez.

Ademais, outros crimes praticados em situações de catástrofe devem ser punidos com maior grau de reprovabilidade, isso em razão da fragilidade que o momento de emergência traz. A ordem jurídica reage com mais severidade quando o crime é cometido em momento de calamidade.

Por todas estas razões, o desastre no Rio Grande do Sul, dadas a singularidade e a excepcionalidade, fez instaurar um regime especial. Entretanto, ainda que venha suspender, provisoriamente, determinados direitos, o objetivo é garanti-los. Não se trata, de modo algum, de favor concedido aos Poderes Públicos.

A exceção instaurada visa garantir direitos. Vocacionada ao atingimento de referidas finalidades, a excepcionalidade impõe especial dever estatal, isso tudo em nome da dignidade das pessoas, da preservação da vida e da saúde pública. Não se trata de, meramente, ampliar os poderes estatais. Muito pelo contrário. Estamos diante de circunstância extraordinária que exige especial compromisso social e institucional de todos os Poderes Públicos. •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Diante de catástrofes’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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