Frente Ampla

Chega de barbárie: é hora de (re)civilizar o Parlamento

É preciso uma boa dose de coragem, nestes tempos de cancelamentos em rede, para enfrentar o senso comum conservador e reacionário

A deputada federal Jandira Feghali. Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
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A grande dificuldade nossa, do campo democrático, progressista e de esquerda, em lidar com a extrema-direita é que eles operam numa frequência bastante diferente da que lidamos na vida e na política. Não nega apenas a ciência, mas também a essência da política e os fatos. Debater com um extremista é tarefa quase inglória e infrutífera. Representam a mais corrosiva antipolítica.

Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela terceira vez em 2022, mas isso não significou a derrota desta corrente de pensamento, que continua a operar nesta frequência destrutiva e distópica, em especial no Parlamento brasileiro, nas redes e nas ruas. Nas palavras do próprio Jair Bolsonaro, líder da extrema-direita no País, “o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”. E os seus liderados eleitos têm se dedicado a pautar retrocessos diuturnamente no Congresso, utilizando-se de um instrumento característico de suas ações, a violência em todas as suas formas.

O ambiente tóxico criado por estas pessoas ultrapassou todos os limites da convivência civilizada na semana que passou. É a barbárie que envenena qualquer tentativa de diálogo e transporta para as relações interpessoais a mesma lógica beligerante das plataformas digitais. Dois parlamentares quase chegaram às vias de fato numa sessão da Comissão de Ética da Câmara, após muitas provocações dos extremistas, e a deputada Luiza Erundina teve que ser internada às pressas na UTI depois de sofrer ofensas e provocações na Comissão dos Direitos Humanos.

Aos 89 anos e com décadas de serviços prestados ao povo brasileiro, no Parlamento, como prefeita de São Paulo e no enfrentamento à ditadura militar, Erundina, esta mulher inspiradora, não mereceu o mínimo respeito por parte de parlamentares da extrema-direita da casa e que defendem até hoje a ditadura militar e suas consequências. Um deles, delegado,  expressou com orgulho que já matou 30 pessoas e poderia ter matado mais.

Curiosamente, são os mesmos que defendem a anistia para pessoas que invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes no dia 8 de Janeiro de 2023. Para eles, os vândalos extremistas são “pessoas de idade”, “pais e mães de família” e “idosos vítimas de injustiça”. Erundina, ao contrário, é vista apenas como uma inimiga a ser eliminada, sem dó.

Estes episódios lamentáveis se encaixam no que a antropóloga e cientista social Letícia Cesarino aponta como um “colapso de contexto entre público e privado” provocado pela plataformização de todas as relações humanas, e que invariavelmente tem reduzido os debates a uma “bifurcação do tipo amigo-inimigo em que o campo público da política é englobado pela lógica privada de comunidades compartilhadas apenas por aqueles reconhecidos como ‘amigos’, e que são vistas como fonte da vida, do valor, da autenticidade e da verdade”.

Diante disso, fica fácil para os bolsonaristas destratar Luiza Erundina e, ao mesmo tempo, pedir clemência para uma idosa que (peço perdão pela descrição) evacuou no prédio do Supremo Tribunal Federal durante a tentativa de golpe. Vale mais um “corte” da realidade para “lacrar” nas redes do que fazer política de verdade, com respeito, seriedade e honra.

Cesarino é uma das principais estudiosas do avanço da extrema-direita no Brasil e no mundo, e descreve bem suas estratégias perniciosas no livro O mundo do avesso – Verdade e política na era digital. O que ela e outros especialistas têm insistido é que já não é mais possível adiar a regulação das redes sociais, que têm servido largamente a estes extremistas em sua “desconstrução” do mundo.

No “mundo do avesso” bolsonarista, fake news, discursos de ódio e teorias da conspiração são construídos a partir de sensos comuns que “explicam” a realidade – “família é homem e mulher”, “bandido bom é bandido morto”, “todo político é corrupto” – e ganham adesão popular a partir dos ressentimentos originados nas desigualdades e injustiças produzidas pelo capitalismo, apesar de defenderem a mais cruel implantação do neoliberalismo.

É preciso uma boa dose de coragem, nestes tempos de cancelamentos em rede, para enfrentar este senso comum conservador e reacionário. No Parlamento, principalmente, isto é imperativo, sob o risco de interditamos o debate e abrirmos caminho para uma guerra não apenas de valores, cultural, mas de violência crescente e retrocessos para o Brasil e para a civilização. Querem nos levar a um Estado penal e punitivista que acentuará o abismo social no País com o patrocínio de uma, como bem descreveu certa vez Darcy Ribeiro, “classe dominante ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa que não deixa o país ir pra frente”. E  agora piorada pelas pautas que não são prioritárias para a reconstrução do que foi destruído e para avançarmos na valorização do trabalho, da ciência, da criatividade e do bem-estar.

Não podemos nos acomodar e ficarmos passivos diante de tanto desrespeito e passos atrás. Faremos o enfrentamento e a disputa político-ideológica. Certo é que não é mais possível tolerar o clima belicoso que corre livremente no Congresso. Cobramos do comando da casa uma atitude diante do que vem acontecendo. Divergências podem e devem existir, mas o debate precisa ser civilizado. Afinal, todos fomos eleitos num regime democrático, e a ele devemos nos  submeter. Sem xingamentos, gritos, tapas, empurrões, ameaças à vida ou arroubos autoritários. Quem tem convicção de suas ideias se impõe pelo argumento.

Chega de barbárie. É hora de (re)civilizar o Parlamento brasileiro.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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