Frente Ampla

Não queremos ser da família, queremos direitos

27 de abril, Dia Nacional da Empregada Doméstica: 10 anos após a PEC das Domésticas, ainda há muito o que fazer

A deputada estadual Ediane Maria (PSOL-SP). Foto: Alesp
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Neste 27 de abril, Dia Nacional da Empregada Doméstica, retomo uma frase usada pela rapper e historiadora Preta Rara ao se referir ao universo do trabalho doméstico: a senzala moderna é o quartinho da empregada. Na última lista suja do trabalho escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho no início deste mês, o trabalho doméstico lidera o ranking de atividades econômicas em que pessoas em situação análoga à escravidão foram resgastadas.

Nessa lista, inclusive, foram parar nomes de criminosos com traço escravocrata como os de Yonne Mattos Maia e seu filho André Luiz Mattos Maia Neumann, que mantiveram sob cárcere, por um período de 72 anos, uma trabalhadora idosa no Rio de Janeiro. A vítima, que só conheceu o trabalho não remunerado ao longo de sua vida, só conseguiu se ver livre dos abusos após ser resgatada por agentes do governo federal. Em Santos, no litoral paulista, caso similar foi deflagrado pelo Ministério Público do Trabalho, que resgatou em 2020 a doméstica Yolanda Ferreira, à época com quase 90 anos, após cinco décadas de trabalho forçado. Por coincidência — ou não — ambas são negras, como tantas outras que foram resgatadas em situações semelhantes, e consideradas como parte da família.

Quando atuava como doméstica, certa vez, tive de ser resgatada pelo corpo de bombeiros porque meus patrões foram viajar e esqueceram de mim.

Parece piada, mas acredite: existem situações piores no cotidiano das trabalhadoras do setor. Infelizmente, relatos de abuso e violências são frequentes.

Sob essa narrativa do afeto, quantas mulheres passaram boa parte de sua vida economicamente ativa sem acesso aos seus direitos, mesmo quando estavam recebendo remuneração por sua força de trabalho? Como alguém com fome e em situação de extrema vulnerabilidade tem condição de sentar-se à mesa com o patrão e negociar salário, folga remunerada e benefícios previstos na lei?

A realidade do serviço doméstico e de cuidados é forjada por cor, classe e gênero. De acordo com os últimos dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio), dos 6 milhões de empregados domésticos trabalhando no País, 91% é composto por mulheres. Destas, a maioria são mulheres negras (67,3%), com média de idade de 49 anos e apenas 1/3 têm carteira assinada, além de que 40% delas vivem em situação de pobreza, ou seja, com meio salário mínimo.

Sendo a primeira empregada doméstica da história eleita na Casa Legislativa paulista, desde o primeiro dia como parlamentar, tenho como foco principal de atuação dar visibilidade e importância às necessidades da categoria das trabalhadoras domésticas e de cuidados. Este último segmento, que agrega várias categorias profissionais, indo da saúde à educação, passando pelo trabalho doméstico, pode ser exercido tanto de maneira remunerada quanto não remunerada. Um levantamento feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, diariamente, em todo o globo, mais de 16 bilhões de horas são dedicadas ao trabalho cuja remuneração é inexistente e a obrigatoriedade vem pela via do afeto, na maioria das vezes imputado a mulheres, sobretudo as que estão na base da pirâmide social — ou seja, negras e pobres.

Passados mais de 10 anos da aprovação da PEC das Domésticas, que sem dúvidas trouxe um grande avanço no que diz respeito ao acesso a direitos trabalhistas, vejo que ainda há muito o que fazer quando se trata de políticas públicas. Nesta semana, a partir da aprovação do  PL 1611/2023 na Alesp, de minha autoria, consagramos a inclusão da presente data no calendário oficial do estado. Pode parecer só mais uma efeméride, mas é um marco histórico que ratifica a data como um importante dia de lutas.

Enquanto programa estatal, a lei vai ser capaz de cumprir a necessidade de fortalecer a visibilidade e o reconhecimento deste trabalho essencial para o corpo social, valorizando as trabalhadoras e a profissão enquanto o exercício de uma função social. Afinal, sem a força de trabalho doméstico, outros setores da economia não avançam. Que cada vez mais a sociedade compreenda que as empregadas domésticas não querem ser da família. Elas querem direitos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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