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Lawfare contra jornalistas

Ao reconhecer que o uso abusivo de ações judiciais compromete a liberdade da imprensa, o STF rejeita a censura e reforça as bases da democracia brasileira

Créditos: EBC
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O Supremo Tribunal Federal reconheceu, na quarta-feira 22, que o uso abusivo de ações judiciais contra jornalistas viola o direito constitucional à liberdade da imprensa. A prática, reconhecida como assédio judicial, consiste no ajuizamento simultâneo de inúmeras ações sobre os mesmos fatos em diversas comarcas. A intensa judicialização visa constranger a atividade jornalística, dificultando e encarecendo a defesa.

O lawfare contra a atividade jornalística vem se tornando corriqueiro no Brasil e, em boa hora, o STF posicionou-se sobre o tema. Nosso Judiciário não pode ser instrumentalizado em favor da censura. É direito de todo jornalista professar suas opiniões, assim como é direito da população conhecer os pontos de vista existentes nos mais diversos temas de interesse público. Nossa Constituição, ao dispor sobre a comunicação social, assegurou a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação sob qualquer forma, processo ou veículo, as quais não sofrerão qualquer restrição. Vedou-se, expressamente, toda e qualquer censura.

Os direitos à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento costumam ser qualificados como direitos de primeira geração, os quais compreendem os direitos civis e políticos das chamadas liberdades clássicas, negativas ou formais. Tais direitos são caracterizados, ainda de acordo com os teóricos do tema, pela necessidade de uma postura negativa do Estado, respeitosa às liberdades dos indivíduos. Referidos direitos não devem ser vistos como mera salvaguarda individual, na medida em que indissociavelmente ligados à cidadania e à dignidade da pessoa humana, bem como ao que podemos chamar de plena participação na vida da polis.

Analisando o precedente “Brandenburg v. Ohio, 395 US 444 (1969)”, da Suprema Corte dos EUA, Cass R. Sunstein consignou, na obra Why Societies Need Dissent?, que a liberdade de expressão está diretamente relacionada à própria ideia de democracia. Para o autor, a proteção dos dissidentes não visa somente proteger individualmente as pessoas que professam determinadas ideias, mas também as inúmeras pessoas que se beneficiam da coragem ou da temeridade daqueles que discordam.

Entretanto, parece haver, no Judiciá­rio norte-americano, maior facilidade em reconhecer os direitos dos dissidentes de extrema-direita, ao passo que a relação com os dissidentes do campo progressista é marcada por maior rigor no reconhecimento das liberdades de expressão e de manifestação do pensamento, como se constata no caso de Julian Assange, fundador do WikiLeaks acusado de espionagem por divulgar informações sigilosas.

Com efeito, é preciso refutar o senso comum de que, nos EUA, a tutela jurídica da liberdade de expressão é mais abrangente. Destaque-se, por exemplo, a possibilidade de que um juiz possa deter, por até 18 meses, um jornalista que venha a, supostamente, atingir a dignidade da jurisdição, negando o fornecimento dos dados da pessoa que lhe serve como fonte de notícia (“contempt of court”). O relatório do Reporters Committee for Freedom of the Press, veiculado em seu domínio eletrônico, apresenta uma lista de diversos jornalistas presos por não fornecerem a identidade das suas fontes ao Judiciário ou por terem dirigido críticas à jurisdição.

No Brasil, há muito mais tolerância ao jornalismo crítico e investigativo em relação à jurisdição do que lá. Por todas essas razões, devemos elogiar a mais recente decisão da nossa jurisdição constitucional, a qual vem se somar ao reconhecimento, ocorrido por ocasião da análise da vetusta Lei de Imprensa de 1967, de que a atividade jornalística é “verdadeira irmã siamesa da democracia”.

Ali restou consignado, ainda, que a liberdade de imprensa proíbe a censura, isso em nome da dignidade da pessoa humana, mas também em razão das liberdades constitucionais de manifestação do pensamento, de informação e de expressão artística, científica, intelectual e de comunicação. O Supremo também reconheceu o relevante papel da imprensa na irradiação do pensamento crítico.

Para além de meros direitos individualmente considerados, estamos diante de retaguardas constitucionais umbilicalmente atreladas ao pacto social e à noção de democracia. Isto é, ao contrário de singelos direitos subjetivos, assegurar a livre atividade jornalística é tutelar o que há de mais essencial em termos civilizatórios. •

Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lawfare contra jornalistas’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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