Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

Mauro Cid e os vampiros da democracia

Tenente-coronel depõe nesta terça na CPMI de 8 de janeiro, uma janela de oportunidade para ligar os pontos sobre as ações de militares que desestabilizaram o Brasil

Jair Bolsonaro e Mauro Cid. Foto: Secom
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As Forças Armadas estão em ‘revista’ para levantar detalhes sobre o seu papel nos atentados à democracia, especialmente nos ataques violentos do final do ano e no dia 8 de janeiro. Nesta terça, dia 11, o dia começa sob a expectativa do depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente. Mantendo a fleuma peculiar aos fardados, sem se abalar com as perguntas da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) na abertura da sessão, Cid optou por não responder, seguindo o direito garantido por um habeas corpus.

O tenente-coronel era olhos e ouvidos de Jair Bolsonaro, teleguiado para as missões nada republicanas e algumas aparentemente trambiqueiras, como a falsificação de carteira de vacinação do chefe, que perdeu os direitos políticos por 8 anos no dia 30 de junho.

Quem preza pelo regime democrático sabe o peso de um personagem chave como ele. Investigá-lo escrutina o papel nefasto que os militares cumpriram para a civilidade do país nos últimos anos, vampirizando as instituições democráticas, e quebrando pactos consensuados com a sociedade. 

Se o Brasil, como um todo, estivesse consciente do que está em jogo, estaríamos todos na frente da televisão acompanhando a CPMI, tal qual aconteceu em outros episódios políticos que pararam o Brasil. Boa parte da sociedade brasileira ainda não liga os pontos entre o governo militar de Bolsonaro e as repetidas intervenções militares desde o fim da monarquia no século XIX. De lá para cá, foram ao menos 9 golpes, segundo alguns historiadores. 

Nossa memória mais recente nos traz apenas 1964. A questão é saber o quanto o Brasil se interessa em repudiar a repetição das quebras democráticas promovidas pelos militares ao longo da história brasileira com sua cantilena de tutela e de poder moderador.

Não por acaso, na audiência desta terça, o tenente-coronel Mauro Cid é cobrado por um arquivo encontrado no seu celular, sob o título “Forças Armadas como poder moderador”, que descreve uma série de ações contra instituições democráticas e a decretação de estado de sítio.

Difícil imaginar que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro seja capaz de entregar a cabeça do ex-presidente e seus generais, quando ele mesmo é filho de Mauro Cesar Lourena Cid, general aliado do ex-presidente, desde os tempos da Academia Militar das Agulhas Negras nos anos 1970.

A pergunta aqui é onde a CPMI quer chegar com a condução dos depoimentos e se vai garantir uma comissão à altura dos acontecimentos. Para Beatriz Kuchnir, doutora em História Social, e autora do livro Cães de Guarda, que aborda o apoio da imprensa ao regime de 1964, o trabalho da comissão é uma grande janela de oportunidade. “Só precisamos ver quanto estamos investindo para trazer o lodo do passado à tona, ou se já estamos passando um verniz”, diz Kuchnir.

Trazer o lodo à tona passa por reconhecer o caráter criminoso das ações militares e de seus autores, e puni-los. Mais do que isso, é uma chance de expor e reforçar essa cultura golpista e criminosa que persevera na instituição militar. Se a CPMI não focar em trazer resultados, corremos o risco de termos parlamentares na comissão atuando para fazer média com seus eleitores no Congresso, sem o real compromisso com a punição dos responsáveis, sejam eles de alta patente ou não. “Muitas questões que estão na comissão já foram descortinadas pela historiografia há 30 anos”, lembra Kuchnir. Eis a chance de a comissão sair da bolha intelectual que disseca as relações de poder dos militares e chegar ao grande público.

A CPMI ouviu militares e ao menos dois manifestantes envolvidos na tentativa de explosão de um caminhão às vésperas do Natal no aeroporto de Brasília. George Washington era um deles, e está preso desde o ano passado quando foi identificado como um dos responsáveis pela confecção da bomba.

Com conexões nas cidades de Belém e Xinguara, no Estado do Pará, onde diz ser gerente de quatro postos de combustíveis, Washington foi detido no apartamento em que estava hospedado em Brasília com um arsenal de armas e munições que somavam 160 mil reais. Ele, que não tem nem casa própria, dificilmente teria comprado esses equipamentos sem financiadores. Quem são eles?

Com registro de colecionador, atirador desportivo e caçador (CAC) desde 2021, Washington frequentou o acampamento protegido pelo Exército no Distrito Federal. Nesse caldo de revolta, se interessou até por um curso de sniper para tornar-se um franco atirador em busca de alvos específicos.

É uma amostra do que a lavagem cerebral promovida pelos agentes do caos, avalizados direta ou indiretamente pelas Forças Armadas, promoveram no Brasil. Não só. Os últimos anos de um governo militar multiplicaram as células neonazistas no Brasil, os ataques às escolas, a extrema-direita.

“Nem todos os militares são extremistas de direita, mas a instituição funciona de tal forma, que esse caldo de cultura se mantém e perpetua”, diz Jorge Rodrigues, mestre em relações internacionais, e estudioso das relações civis e militares. Uma das explicações, observa Rodrigues, é o comportamento de casta dos militares com seu sistema de saúde descolado da sociedade brasileira, previdência à parte, e claro, um tribunal de justiça para chamar de seu.

O silêncio de Mauro Cid, e a tranquilidade que exibe durante as a CPMI, dá sinais que ele espera ser julgado pelos seus. E não se pode cruzar os braços esperando o desfecho de sempre. Não são o tenente-coronel, nem Jair Bolsonaro os únicos responsáveis pela recente quebra cívica vivida no Brasil. Os generais se articulam desde sempre para estar em posições de poder de comando da política, e aparelham instituições com representantes fardados ou seus simpatizantes de modo a manter uma porta de entrada para assumir o papel de paladinos morais. Nem que seja às custas de atentados e ameaças de golpe.

Na história, houve outros George Washington, ouros generais Helenos, Bragas Nettos para distorcer a realidade com o uso de força. O tenente-coronel Mauro Cid é uma peça dessa engrenagem, ainda que não tenha sujado as mãos de pólvora. Se a CPMI não conseguir avançar com ele, é preciso encontrar o arcabouço jurídico para que ele responda pela responsabilidade que lhe cabe.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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