O que os atentados no RN dizem sobre os desafios da esquerda na segurança pública

O que hoje se vê como crise no estado é a consequência mais desastrosa dos desinvestimentos sequenciais de governos que, um após outro, ignoraram os absurdos que acontecem dentro das unidades prisionais

Imagem: Prefeitura de Acari/GOVRN

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O Rio Grande do Norte está no centro do noticiário nacional nos últimos dias. Uma série de atentados e ações criminosas, incluindo incêndios em prédios e automóveis, fez com que as forças de segurança locais fossem reforçadas pela Força Nacional para contê-los. Em paralelo, sobram clamores para que as Forças Armadas tomem parte da repressão, construindo um clima infértil para reflexões que, para além de resolver o problema, são fundamentais para que não venha ocorrer novamente.

Uma facção criminosa local reivindica a autoria dos atentados. Maus-tratos, todo tipo de insalubridade e condições desumanas em presídios foram identificados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura antes dos ataques, sendo estas algumas das razões para sua ocorrência. Notoriamente, quem os cometeu não está a salvo das consequências legais de seus atos. Mas seria a vida uma cópia descomplicada de filmes de Marvel, com vilões e heróis muito bem definidos, livres de enfrentar as indesviáveis contradições do mundo real?

Não existe crise no Sistema de Segurança Pública no Brasil. A crise, parafraseando Darcy Ribeiro, é um projeto, resultado mais sintomático da escolha pela absoluta liberdade de mercado e a busca incessante pelo lucro e pela acumulação, responsáveis por gerar desigualdade social e violência, especialmente nas zonas periféricas das grandes cidades. Não há acumulação rentista, a exemplo da promovida pela emenda do teto de gastos, que não sangre os cofres públicos, drenando, para bolsos privados, recursos de serviços e políticas públicas, dentre as quais as de segurança.

O que hoje se vê como crise no Rio Grande do Norte é a consequência mais desastrosa dos desinvestimentos sequenciais de governos que, um após outro, ignoraram os absurdos que acontecem dentro das unidades prisionais do estado. Tenha-se como exemplos a crise que aconteceu em 2015, cujas reivindicações eram, tão somente, a garantia de direitos previstos na Lei de Execuções Penais, e as cenas surreais da chacina de 2017, onde 26 corpos ainda são dados como desaparecidos. Ignorar, a partir dos acontecimentos recentes, que isso pode se repetir mostra como a Segurança Pública é um tema que aperta demasiadamente o sapato de certas frações esquerda, gerando calos que sangram tais quais as costas arrebentadas dos torturados dentro e fora das prisões.

Não esqueçamos que tal tema é a menina dos olhos da direita e da extrema-direita. Um exemplo disso é que, diante de qualquer crise, é a direita que está sempre esbravejando por mais repressão, incluindo medidas como a instauração da Garantia de Lei e Ordem (GLO). Nada mais superficial para lidar com um problema que data dos tempos de um Brasil que escravizava, torturava e punia sem lei e sem limites.

A violência de hoje e de ontem tem origens em um sistema que sacraliza a propriedade privada e mata gente inocente todos os dias nas zonas periféricas. É consequência direta do modo de produção capitalista e sua mais recente formação, qual seja, o neoliberalismo, que precariza as relações de trabalho e fragiliza as condições de vida da população. Um sistema que gera concentrações obscenas de renda e deixa milhões vivendo na miséria. Tanta desigualdade social vai, cedo ou tarde, gerar violência nos setores mais empobrecidos da sociedade.


É justamente neste ponto que começa a queda de braço com o que se convencionou a chamar de Estado Democrático de Direito.  De um lado, o exército de reserva, sem emprego e renda, tendo acesso ao mínimo para sobreviver; e do outro, o Estado, espaço de garantia da produção e reprodução da exploração capitalista e salvaguarda dos interesses das classes burguesas, agora provocado para conter este grande exército de ninguéns, fazendo uso, inclusive, de forças repressivas bastante paramentadas, com toda sua tecnologia penal. Há como falar em democracia quando uma parcela significativa da população vale menos que as balas que a matam?

Reprodução/TV Cabugi

Trata-se de uma luta desigual não só no que se refere aos instrumentos materiais (para não dizer bélicos) de cada lado, mas, especialmente, a partir do poder econômico e suas representações em espaços decisórios, estimulando uma sociedade de ações punitivas e repressivas. Nela, todo o aparato estatal para conter a violência recai sobre a população que nada tem. Eis a história da Segurança Pública no Brasil, dos tempos coloniais à república, onde o direito penal permanece como instrumento de controle social, voltado àqueles e àquelas que não recebem chancela para viver. Basta lembrar de tipificações como “vadiagem”, a prática de capoeira e de cultos religiosos de origem africana no Brasil pós “abolicionista”.

Temos hoje uma perspectiva mais moderna, arrojada e disfarçada para continuar punindo o refugo de uma sociedade desigual. Fazemos uso de ações institucionais, legitimadas por leis cujo interesse continua sendo afastar do convívio social aqueles e aquelas que, uma vez merecedores dos lugares mais insalubres da sociedade, tanto faz encarcerar em masmorras ou deixar morrer de fome, doença ou bala.

Espera-se que governos de esquerda ao menos tentem romper com essa lógica carcerária, fruto direto das atuais relações produtivas. É lícito esperar também que investimentos em políticas de educação e assistência social possam ter mais espaço no orçamento que ações ostensivas de segurança, reflexos das dificuldades em assimilar que políticas de segurança, em sentido macro, vão além da pura e simples repressão. É impossível manter um discurso de defesa dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo, efetivar práticas punitivas que muito se alinham ao fetiche punitivo da direita hidrófoba.

Não adianta colocar nas costas do “crime organizado” a razão de tanta violência. Tampouco é no aumento da repressão que está a solução. A esquerda organizada, incluindo a que ocupa espaços institucionais de decisão, precisa enfrentar temas espinhosos e buscar o enfrentamento quanto a certos temas que, em tese, são inegociáveis, como a defesa dos Direitos Humanos e a luta pela construção de uma sociabilidade que supere as formas capitalistas e coloque a fraternidade, a solidariedade e o bem-estar de todos(as) em seu horizonte.

Não será se apropriando invariavelmente de métodos repressivos, típicos da prática e da retórica de setores da direita, que chegaremos a esta sociedade.

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