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Opinião
Os ecos de Preussenschlag
Bolsonaro outorgou a si mesmo a condição de guardião máximo da Constituição. Não se trata de mera interpretação temerária da Constituição ou mesmo de abuso, desvio de poder ou de finalidade. É mais grave
Por
Pedro Serrano
29.04.2022 06h22 | Atualizado há 2 anos
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Recentemente, o Supremo Tribunal Federal condenou o deputado federal Daniel Silveira à pena de reclusão de oito anos e nove meses pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e de coação no curso do processo. A condenação deveu-se a um vídeo publicado pelo deputado nas redes sociais, cujo conteúdo incluía xingamentos a magistrados do STF. Daniel Silveira foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros da Corte e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo.
No dia seguinte ao julgamento – e, portanto, antes mesmo da publicação da decisão e do seu trânsito em julgado –, o presidente da República concedeu-lhe indulto individual ou graça. Não há dúvidas de que o presidente possui competência discricionária para a concessão de indulto individual. Entretanto, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. É preciso aferir se a decisão foi compatível com a Constituição.
A concessão do indulto individual, ainda que comporte elevado juízo de conveniência e oportunidade, possui limites: não pode ocorrer de forma excessiva ou desviante. Por essa razão, é necessário analisar os fundamentos adotados para a expedição do ato. O presidente da República fundamentou a concessão do indulto tendo em vista que “a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações”. Ou seja, Jair Bolsonaro determinou os limites, bem como a extensão e o alcance, de um direito previsto na Constituição, isso em razão de um suposto erro do Judiciário, substituindo o STF em seu papel de intérprete final da Constituição (guardião da Constituição).
Nas ciências humanas e sociais aplicadas, a base empírica é a história. Assim considerando, rememoremos o debate travado entre as teorias schmittiana e kelseniana sobre a quem deve ser atribuído o papel de guardião da Constituição. A teoria schmittiana, ao contrário da kelseniana, desqualificou os Poderes Judiciário e Legislativo como protetores da Constituição e atribuiu ao chefe do Executivo esta condição. Entretanto, a teoria schmittiana foi soterrada no pós-Segunda Guerra Mundial. O professor Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, em obra no prelo pela Editora Contracorrente, constatou que a reação do Tribunal do Estado à decretação do Estado de Emergência na Prússia pelo presidente do Reich, em resposta ao “domingo sangrento” de 1932, abriu caminho para a nomeação de Adolf Hitler como chanceler do Reich e, mais adiante, para a ascensão plena do nazismo.
Tendo sido questionada a competência do presidente do Reich, o Tribunal do Estado sucumbiu ao reconhecimento dos poderes do chefe do Executivo (caso “Preussen versus Reich”), no que veio a ser conhecido como o “Preussenschlag de 1932”. A decisão foi no sentido de que o ato político praticado pelo chefe do Executivo era insindicável pelo Judiciário. Algum tempo depois, Hitler valeu-se do mesmo dispositivo constitucional para, após o incêndio do Reichstag de 1933, implantar o totalitarismo.
Não é preciso explicitar os conhecidos desdobramentos que se seguiram, os quais marcaram, com tintas de sangue e sem precedentes, a história da civilização.
A supremacia do chefe do Executivo em detrimento de outros poderes, por meio da adoção de atos insindicáveis, é uma técnica desastrosa. Os norte-americanos chamam isso de constitucionalismo abusivo. Os alemães – o jurista Bernd Rüthers, por exemplo – qualificam-na como degeneração do Direito.
Subvertendo a lógica constitucional, Bolsonaro outorgou a si mesmo a condição de guardião máximo da Constituição. Não se trata de mera interpretação temerária da Constituição ou mesmo de abuso, desvio de poder ou de finalidade. A deslegitimação do Judiciário anuncia, às sombras de técnicas de características nazistas, o mais severo desafio imposto à democracia brasileira em sua história recente: o questionamento da credibilidade do processo eleitoral dos próximos meses. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os ecos de Preussenschlag”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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